Já se compararam as mangás de Kiriko Nananan com breves storyboards, não só devido à sua característica gráfica de representar personagens nas vinhetas sem mais informação visual, como também pelos seus diálogos esparsos, vulgares, contemporâneos, realistas (de que as traduções francesa e inglesa parecem dar boa figura).
Blue é uma série de 10 capítulos que contam a história de um amor adolescente entre duas adolescentes. Não se trata de memórias, mas de algo que nos é contado num ligeiro desfasamento em relação ao presente da acção. Essa leveza é da maior importância. Se bem que o amor é entre duas raparigas, nada sabemos do que se terá passado depois, e também não se explora uma qualquer dimensão sociológica. Importa apenas que essa atracção existiu, foi sentida de modo diferente pelas duas raparigas, Kayako e Masami, e que foi sempre acompanhado por um teor elegíaco, mesmo quando respirava.
É essa leveza que é transmitida por toda a estratégia gráfica. A indistinção entre as personagens, sobretudo as protagonistas, parece ser propositado, claro, e não uma mera falta de construção, ou um certo estilo à mangá a que nos pudéssemos ter (mal-)habituado. Por outro lado, se existe a ideia feita de que o amor opera sobre pessoas que possuem já características em comum e que, no seu exercício e influência, essas mesmas pessoas se vão tornando cada vez mais parecidas uma com a outra, aqui essa ideia é elevada à operatividade gráfica máxima, quase como uma hipérbole.
Bastará folhear outras histórias de Nananan (uma publicada em Sake Jock, pela Fantagraphics, e duas pela Viz em Secret Comics Japan) para notar que essa estratégia de simplificar os desenhos das pessoas não se repete sempre (outras particularidades a esquematização das personagens, a ausência de detalhes cenográficos, os brancos, um texto flutuante e narração extradiegética ou monólogos interiores sim). Os desenhos de Kiriko Nananan parecem ter ganho um maior controlo dos contornos e dessa estilização gráfica quase industrial, em relação a trabalhos anteriores, como Heartless Bitch (na SCJ). Já antes falei desse possível estilo industrializado, ainda que com um ímpeto mais fraco e frutos menos conseguidos, em relação ao Fujisan de Akira Sasô.
Os usos dos grandes espaços ou vinhetas em branco, a ausência de detalhes radicais, por vezes, apenas com as personagens vogando na vinheta também não são do mesmo teor que, por exemplo, os já citados exemplos de Frederik Peeters ou o ambiente etéreo de Fazenda/Nora nas histórias de Cotrim. Se por um lado, podem instigar-nos a um centrar das atenções às personagens implicadas, como que esbatendo as circunstâncias em que se movem, elevando tudo o que é visível a um simbolismo generalizado, por outro poderá decorrer de um honesto interesse pelo essencialmente humano: as emoções, as ligações momentâneas que todos fazemos no dia-a-dia, mas de forma entregue, nunca falsa.
Não é acreditar que o amor dure para sempre, mas simplesmente amar para sempre enquanto o amor durar, para lembrar Vinicius de Moraes. O contraste mais marcante permitido põe esse estilo é precisamente a utilização de personagens e décors tão planos e reduzidos a um mínimo de expressividade gráfica para explorar pequenos tormentos emocionais que se desenrolam no interior, sem porém entrar em grandes lances dramáticos.
Não se trata nem de uma novela erótica, nem de uma soap opera. Sinais simples, como a minúscula lágrima nos olhos de Kirishima na pg. 49, bastarão para nos convencer de qual o tema retratado.
A um primeiro olhar, poder-nos-ão surgir essas criaturas femininas tão impávidas e superiores à emoção humana como as que Furuya Usumaru havia explorado ironicamente em Short Cuts (Viz): as kogal. Ou mesmo como qualquer dessas personagens de bd ou merchandising derivado de Hello Kitty e simplesmente com o intuito de um certo fetichismo das raparigas japonesas. Se bem que todas as personagens pareçam belas demais para serem realistas, Nananan brinca com essa aproximação, como já havia feito noutros trabalhos.
Porém, sendo esta uma obra de maior fôlego, torna-se a sua exploração das emoções femininas bem mais narrativa do que impressionista. Quer dizer, parece precisamente essa direcção de criaturas distantes e frias que o estilo gráfico de Kiriko Nananan parece apontar, para depois nos desviar dele radicalmente pela exploração contínua dos enganos amorosos das duas raparigas.
Tendo começado na (como não?) Garo, faria parte do currículo da autora explorar um domínio relativamente recente na mangá, que não se coaduna com explorações chãs das relações humanas, mas parece vertido à representação de verdadeiras e acabadas personalidades.
Escrito por: Pedro Vieira Moura