Kaoru (Suzuki), uma mulher de 30 e poucos anos, está casada com um homem mais velho, cego e aparentemente mudo (Yamazaki), do qual cuida numa casa situada numa pequena cidade da costa, na Península de Izu. Ela afirma-se dependente dele, mas o que o que os liga não parece ser amor. Nas suas deambulações, Kaoru descobre o bar de uma associação de pescadores, onde conhece um casal jovem, Taichi (Ando) e Eiko (Ito). Os jovens provocam-na e ela responde, movida pela curiosidade. O marido sai sozinho de casa com alguma frequência e ela procura-o.
«Crickets» (Korogi) é a obra de Aoyama Shinji que se seguiu a «Eli Eli Lema Sabachthani?» (2005), vencedor da secção Un Certain Regard do Festival de Cannes, sendo também o título mais recente dos 14 seleccionados pelo Festival Independente de Cinema de Lisboa (IndieLisboa), para a edição de 2007, no âmbito da secção “Herói Independente”, que contou também com o “Novo Cinema Alemão”.
O cenário fora da grande cidade sugestiona um ritmo próprio, bem como o facto das quatro personagens principais serem ociosas; o seu dia a dia é caminhar, fazer compras, comer. O mundo da personagem central é auto-limitado pelas suas escolhas: viver fora da metrópole e dedicar a sua vida a cuidar do marido. Kaoru observa o homem com uma curiosidade por vezes infantil, mas também com uma certa malícia; o modo como ele come e se suja ou caminha perigosamente pela rua entretêm-na. Por vezes, parece testar as reacções dele, a confinar os seus movimentos, como uma criança que arranca as asas a uma mosca.
A natureza da dedicação da mulher ao homem cego é ilustrada pelas várias cenas onde se enquadra em grande plano uma camisa nova, cuja etiqueta é cortada com uma tesoura. Ela deixa-o sujar-se, incentiva-o a tal. Prefere dar-lhe roupa nova do que lavar a que ele sujou. Mais do que cuidar dele, ela observa, testa-o. Cada camisa branca inicia novo período de observação.
As personagens assumem uma natureza cada vez mais simbólica à medida que o filme se aproxima do final. Existem sugestões religiosas, com referência à presença dos portugueses no Japão e à disseminação do Cristianismo no território a partir do final da primeira metade do Século XVI, fortemente perseguido pouco depois. Há uma espécie de peregrinação a uma gruta chamada “Arari” (ver nota), onde se ouve uma récita em português — um sample de um filme de Pedro Costa, com a voz de Vanda Duarte.
Aoyama Shinji falou em Sebastianismo em relação à função da personagem do cego — talvez uma provocação à audiência portuguesa? —, caracterizando-se Kaoru como uma pessoa passiva, que observa e espera por algo que lhe possa eventualmente dar sentido à vida. O cego assume essa função “religiosa”, que é também o símbolo do isolamento da mulher. Pela sua devoção, ela espera talvez o perdão por actos do passado, mas a sua fé não é sólida.
Nota: Diz-nos o filme que o termo “arari” é similar a “asas” em italiano e português, derivando do latim, algo que pode não parecer óbvio. A utilização dos caracteres chineses “安良里” é fonética, mas o último — com um significado de “localização, vizinhança” ou “interior”, será excepção. Sem o “li”, ficamos com “ara” ou “ala”.
Autor: Luis Canau ( www.asia.cinedie.com )