Japão, século XVI. O clã Ichimonji é um dos mais poderosos do país do sol nascente e tem em “Hidetora” (Tatsuya Nakadai), um líder forte e orgulhoso. No entanto, após ter iniciado a sua sede de conquista 50 anos antes, “Hidetora”, agora com a respeitável idade de 70 anos, sente que é altura de passar a liderança a alguém mais jovem.
Reunido com os seus três filhos, “Hidetora” decide atribuir a liderança do clã ao descendente mais velho chamado “Taro” (Akira Terao). Os restantes irmãos “Jiro” (Jinpachi Nezu) e “Saburo” (Daisuke Ryu) ficam com castelos, controlando regiões menores e devendo obediência ao mais velho. O filho mais novo “Saburo” acha o plano do pai imprevidente e tem uma violenta discussão com ele, acabando por ser banido do clã e acolhido pelo nobre vizinho “Nobuhiro Fujimaki” (Hitoshi Ueki).
Efectuadas as partilhas necessárias, o velho “Hidetora” vai viver no castelo principal, onde “Taro” governa o clã Ichimonji. No entanto, “Kaede” (Mieko Harada), a esposa de “Taro”, manipula com destreza a mente fraca do marido, e este começa a desprezar a presença do pai. Ofendido, “Hidetora” decide ir viver para o castelo do segundo filho “Jiro”. Este, no entanto, igualmente declina a companhia do pai. Despeitado ao ponto máximo, o antigo líder do clã, resolve ocupar o terceiro castelo que se encontra vazio devido ao banimento de “Saburo”.
Mais uma vez influenciado pela perfídia de “Kaede”, “Taro” declara o pai insano e ataca o castelo conjuntamente com o seu irmão, derrotando os 30 bravos guerreiros que escoltavam “Hidetora” e que constituíam a sua guarda pessoal. Contudo, é morto no decurso do combate, por instigação do seu irmão “Jiro”, que assume agora a liderança dos Ichimonji.
O velho sobrevive, e deambula como um louco pelos campos, acompanhado apenas do bobo da corte “Kyoami” (Peter). O infortúnio de “Hidetora”, chega ao conhecimento do filho renegado “Saburo”, e este invade o território dos Ichimonji, tendo em vista salvar o pai. Uma batalha sangrenta espreita, e o futuro do clã será decidido definitivamente.
Para mim é bastante difícil falar ou escrever algo sobre “Ran, os Senhores da Guerra”, doravante designado abreviadamente e com muito carinho, simplesmente por “Ran”. O que é que significa este filme para a minha pessoa? Várias coisas, que se tornam impossíveis de descrever num pequeno texto. Pelo exposto, tentarei ser o mais objectivo que as minhas parcas faculdades permitirem.
Em 1º lugar, “Ran” é um dos grandes responsáveis por hoje em dia eu alimentar este pequeno blogue chamado “My Asian Movies”. As memórias perdem-se no tempo, quando tento relembrar a 1ª vez que tomei contacto com este filme. No ano em que “Ran” viu a luz do dia, eu tinha a singela idade de 7, 8 anos. Tendo em conta que na Madeira, estas películas, à semelhança do que acontece hoje em dia, muito raramente estreiam, pus de parte a hipótese “sala de cinema”. No entanto, com alguma nostalgia, comecei a pensar nos gloriosos ciclos da sétima arte que a Câmara Municipal do Funchal levava a efeito há bastantes anos atrás. Nessa altura, adorava que os meus pais me levassem ao nobre teatro Baltazar Dias a ver filmes que, devido à minha meninice, quase nunca entendia. Não sei porquê, mas ligo “Ran” a esses tempos. Pesquisei, e não encontrei nenhuma referência à exibição desta longa-metragem, na citada sala de espectáculos. Se alguma alma caridosa tiver ideia de alguma relação de “Ran” com esta minha impressão pessoal, não se acanhe e dê um passo em frente! Talvez tenha sido imaginação minha, e o VHS tenha operado o milagre naqueles tempos.
Perdoem-me o devaneio. Vamos ao que interessa!
Os mais informados acerca da vida e dos gostos do mítico Kurosawa, saberão que o realizador japonês teve alguma predilecção pelas tragédias shakesperianas, que em muito inspiraram os argumentos dos seus filmes. No que toca a “Ran” esse aspecto veio ao de cima, pois a película colhe muito da tragédia do dramaturgo de Stratford – upon – Avon, denominada “King Lear”, mesclada com a lenda japonesa do daymio Mori Motonari. O resultado é, à falta de adjectivo melhor, brilhante! Uma estória pujante, com personagens extremamente cuidadas, dotadas de personalidades bem construídas, que nos fascinam pela expressão da sua natureza humana e falível.
Intimamente ligadas à magnificência do argumento, surgem as grandiosas actuações dos actores do filme, com uma natural primazia para Tatsuya Nakadai, que dá vida ao senhor da guerra “Hidetora Ichimonji”. Meu Deus, que interpretação! É praticamente do outro mundo, assistir a transfiguração de um “Hidetora” habituado a comandar e a ser obedecido, como qualquer outro nobre do Japão feudal, em um homem insano devido às agruras da vida, que neste caso se reconduzem à traição de dois dos seus filhos. Nakadai parece um fantasma que desfila as suas frustações e pesadelos pelo ecrã, e nos impressiona vivamente com a loucura pessoal trágica, mas bastante significativa. Quando as coisas correm mal, normalmente o passado volta para perseguir-nos impiedosamente, e os chamados “skeletons in the closet” emergem quão vilões sanguinários. “Hidetora” foi implacável ao longo da sua vida, atendendo ao seu percurso como senhor da guerra. O presente agora vem cobrar a retribuição. Outro carácter fascinante, e que porventura merecerá algum destaque em relação aos demais, será “Kaede”, interpretada pela actriz Mieko Harada. O perfil da mulher que a todos manipula e que empurra os homens para a perdição, usando uma astúcia fora do comum, não será propriamente uma novidade nos filmes de Kurosawa. Pessoalmente, fiz bastantes analogias de “Kaede”, com a personagem “Asaji”, presente em “O Trono de Sangue”, e interpretada à altura por Isuzu Yamada. Ambas as mulheres são extremamente manipuladoras, e conseguem levar a cabo os seus propósitos pessoais. Entendo que com “Kaede”, Kurosawa foi mais longe e mostrou uma verdadeira “raposa de nove caudas”, expressão usada por Kurogane, o experiente general de “Jiro”. A representação, segundo dizem, é bastante influenciada pelo teatro Noh japonês. Se assim o é de facto, tenho de começar a virar baterias para esta forma de actuação, pois observando Tatsuya Nakadai e Mieko Harada nas suas brilhantes “performances”, o interesse é sobejamente despertado. Eu desejei seriamente que ambos morressem durante o filme, um em nome do sofrimento, a outra relativamente à repulsa que me causava!
Com um orçamento que à época rondou os 12 milhões de dólares, “Ran” é um luxo visual, que nos deslumbra em cada cena. Tendo sido o trabalho mais oneroso de Kurosawa, do ponto de vista financeiro, é notório onde o dinheiro foi gasto. Falemos de números. 1400 armaduras fabricadas, 200 cavalos (alguns importados dos E.U.A.), filmagens em locais emblemáticos do Japão, tanto do ponto de vista natural, como arquitectónico de que são exemplo as fortalezas de Kumamoto, Himeji e Azusa. Verdadeiramente impressionante são os 1,5 milhões de dólares gastos na construção do denominado 3º castelo que é incendiado, do qual “Hidetora” sai num torpor lancinante, dando origem a uma das cenas mais emblemáticas da película. Apesar do vasto orçamento para a época, poderíamos estar perante um “flop” monumental, que faria arrancar os cabelos! Com Kurosawa, isso é impossível de acontecer! Deêm-lhe as armas (de preferência “katanas”) e o “grande homem” maximiza resultados ao máximo!!!
Como se poderia eventualmente fazer crer, não se espere um filme impregnado de batalhas épicas, pois essencialmente só existem duas que não ocuparão em conjunto mais do que uns 35, 40 minutos da longa-metragem. No entanto, quando os combates acontecem, é a dureza, realismo e violência do costume! O sadismo é elevado, e até pensamos que as paredes de casa ficavam muito bem pintadas de sangue (o trocadilho refere-se à morte de uma personagem da película)…
O texto já vai longo…importa agora concluir.
Na incomparável cinematografia do mítico Kurosawa, torna-se bastante complicado tomar partidos. A maior parte, eventualmente, será da opinião que o espectacular “Sete Samurais” será a sua obra mais emblemática. Outros preferirão a abordagem de “Rashomôn”, “Trono de Sangue”, “Fortaleza Escondida”, “Yojimbo” ou até “Kagemusha”. Aqueles que acham que a cinematografia do mestre japonês não pode ficar reduzida ao “chambara” (e muito bem), pugnarão, a título meramente exemplificativo, por “Ikiru” ou “Cão Danado”. No meio de tantas pérolas cinematográficas, opto por esta despedida do realizador japonês quanto aos épicos inesquecíveis. Embora não gostasse de ser um “senhor da guerra”, sempre me imaginei como um “Saburo” que apesar das discordâncias, anseia sempre por fazer justiça e retornar para aqueles que mais ama. Mesmo que o futuro seja envolto em tragédia… Afinal, e como diz “Kyoami”, o bobo de “Hidetora”, “num mundo de loucos, só os loucos são sãos…”. Eu acrescentaria, “e os sonhadores também!”
Nomeado para 4 óscars, entre os quais o de melhor realizador, viria injustamente apenas a vencer um (melhor guarda-roupa). Salva-se o “Globo de Ouro” para melhor filme estrangeiro, um César e mais duas mãos cheias de prémios em vários certames. Um dos grandes momentos do cinema mundial merecia, mesmo assim, muito mais!
Autor: Jorge Soares ( http://http://shinobi-myasianmovies.blogspot.com )