Depois de cometer um duplo homicídio, o amoral Rou (Arai) regressa ao seminário onde foi criado, algures no interior do Japão. Impávido e sereno, continua a cometer actos violentos contra pessoas e animais, num ambiente de formal religiosidade sem perspectivas de salvação. O comportamento abusivo do jovem choca e põe em causa a fé de monásticos, com a excepção do Padre Komiya (Ishibashi), a quem o protagonista, no início do filme, assiste a leitura de passagens da Bíblia — com uma mão por baixo da batina.
«Whispering of the Gods» é a estreia na realização de Omori Tatsushi, irmão do actor Omori Nao («Ichi the Killer») — que aqui também interpreta um papel secundário. O filme caracteriza-se por uma ríspida ausência de juízos morais e dessacralização de valores, algo que não é particularmente raro no cinema japonês, sobretudo se se tratarem de obras mais independentes ou underground.
O comportamento vicioso ou violento do protagonista não é o elemento central do filme — não se move na direcção da sua punição ou redenção. Este ponto de vista poderia inquietar o espectador incauto, mas o filme de Omori providencia um bom número de oportunidades para o fazer abandonar a sala antes de ter tempo de tecer tais considerações. Fá-lo-á quem se ofender, mas quem tiver tolerância pelas extravagâncias que pontuam «Whispering of the Gods» tem aqui oportunidade para umas boas gargalhadas.
Uma das características distintivas desta obra é a sua circunscrição espacial, num cenário árido, onde se encontra uma quinta com uma exploração pecuária e um convento. Os planos limitam-se a dois ou três interiores e ao espaço exterior, frequentemente lamacento e imundo. Omori contrapõe a sujidade da pecuária com a (pretensa) pureza espiritual do convento, por onde deambula um protagonista para quem essas diferenças pouco importam. A aridez do cenário prolonga-se através da escassez de figuras humanas que por lá se movem, com notória ausência de secundários e de figuração ao fundo; estamos num mundo isolado, abstracto, onde nem tudo deve ser tomado pelo seu valor facial.
Rou não é a peça de dominó que faz desmoronar uma estrutura moralmente frágil. O Padre Komiya e o chefe de escuteiros, figuras de autoridade moral, estão também corrompidos. Podemos concluir que se incluíram entre os educandos do jovem, contribuindo para a sua (de)formação moral. Rou partilha com o padre, casualmente, actos de cariz sexual, e responde a sugestões obscenas (ou escabrosas) do chefe de escuteiros. Mas que não se infira que há um pendor gay kinky a dominar as práticas sexuais; Rou envolve-se também com freiras, as quais procura forçar a quebrar os votos. Podemos tomar tais actos literalmente, como um meio de “chocar” o espectador mais sensível (que por alguma razão ainda não saiu da sala), ou figurativamente — só conhecemos a solidez ou fragilidade dos valores quando os pomos à prova; o traje que envergamos não reflecte automaticamente a nossa natureza (que é como quem diz: “o hábito não faz o monge”).
A audiência do Seoul Film Festival recebeu bem o filme, com risos sonoros ao longo da projecção. Ao meu lado estava uma espectadora católica (europeia) que o achou muito divertido. Não se ofendeu com as extravagâncias, pois não o tomou como um “ataque” à instituição nem considerou que pretendesse ser, acima de tudo, um retrato (ou sequer caricatura) da religião. Tanto assim foi que não deixou de tirar uma foto ao lado de Omori Tatsushi e Arai Hirofumi no final da sessão, como tantos outros espectadores (mais meninas, claro). Afinal, o valor “choque” do filme prende-se, em parte, com a forma como é satirizada a instituição religiosa, mas podemos tomá-lo como uma metáfora social de âmbito mais geral.
«Whispering of the Gods» foi inicialmente exibido no Japão num recinto construído para o efeito, junto ao Tokyo National Museum. De acordo com Tom Mes, no site Midnight Eye, o motivo principal teria sido evitar a classificação e possível censura. O SeNef, na Coreia do Sul, exibiu-o em Setembro de 2006, anunciando-o como estreia asiática. Antes passou pelo Tokyo International Film Festival e por Locarno.
(O filme apresenta algumas cenas reais de violência contra animais que poderão chocar alguns espectadores.)
Escrito por: Luis Canau ( www.asia.cinedie.com )