Para nós, os estúdios Ghibli são a grande referência mundial no campo da animação, com as obras de Miyazaki e Takahata a alcançarem um plano superior face à concorrência dos seus equivalentes ocidentais. Foi por isso com grande antecipação que recebemos a notícia do envolvimento dos estúdios na produção de um artefacto videolúdico. Movimento inaudito, não só por terem um historial conturbado de adaptações a videojogos, como pelo facto do próprio Miyazaki ter expressado sucessivas vezes no passado o seu desdém pelo meio.
Infelizmente, o detentor da honra dessa colaboração era a Level-5, o estúdio nipónico identificado pela produção de RPG’s de segunda como “Dark Cloud” ou “White Knight Chronicles” e os puzzles didácticos de “Professor Layton”… dificilmente um par à altura do desafio de adaptação da visão da Ghibli. O resultado, “Ni no Kuni”, é assim uma enorme contradição: de um lado tem alguma da sensibilidade humana e espiritual da melhor arte japonesa, e do outro tem um jogo derivativo e oportunista vindo de um estúdio orientado para a produção industrial de obras infanto-juvenis menores.
O fundo temático, as animações e a brilhante arte conceptual da Ghibli merecem a mais cuidada das apreciações, e a deliciosa banda sonora de Joe Hisaishi, apesar de não igualar as suas composições maiores, facilmente entra no domínio do género J-RPG como uma referência obrigatória. O problema é que a Level-5 apenas traduziu estas dimensões num plano iminentemente superficial, no processo introduzindo – na minúcia visual, na narrativa e no desenho lúdico – o tom infantil e sacarino que caracteriza os piores videojogos nipónicos.
“Ni no Kuni” tinha tudo para ser uma reflexão agridoce sobre a infância e a necessidade que todos temos de crescer psicológica e moralmente quando confrontados com as agruras da vida, só que desperdiça esse potencial todo ao deixar-se embrenhar numa catadupa de tropos de fantasia, apropriados sem reflexão nem senso.
A Level-5 tirou tudo o que numa obra da Ghibli poderia comprometer a sua acessibilidade para todos os públicos: depois de uma estrondosa sequência de introdução (onde morre uma personagem de relevo), toda a matéria emocional é condescendentemente explicada até à exaustão e limpa de qualquer ambiguidade e negatividade que possa conter, tudo tornado bonito e plástico e simpático e alegre… afinal, não queremos que os pequenitos chorem ou sintam algo que não diversão pura na sua experiência.
A elegância e sofisticação que caracterizam os melhores contos infantis requereria artistas dignos desse nome, capazes de entender que há algo mais em “Chihiro” que cor e brilho e forma e satisfação, e como na Level-5 nunca tiveram essa alma, são incapazes de a replicar. O estado das coisas é por demais piorado porque debaixo da gloriosa tinta digital apenas vive mais um J-RPG com enredo de ‘salvar o mundo mágico’, ersatz de “Dragon Quest” e “Pokemon”, e que ainda por cima se estende ao longo de 40 morosas horas repletas de combate fastidioso e mal desenhado.
A Level-5, ao invés de olhar para os grandes clássicos sobre a infância nos videojogos – o original “Legend of Zelda” ou “Boku no Natsuyasumi” – preferiu o caminho fácil de usar o seu template genérico de RPG, acabando assim por matar por completo toda a alma Ghibli que vive à tona da obra. Daí, é com pesar que reconhecemos Miyazaki tinha razão: nem a Ghibli conseguiria oferecer algo capaz de elevar o caldo videolúdico ao patamar da sua arte.
Escrito por: Rui Craveirinha