Por norma, os videojogos são infantis, e mesmo quando vestem trajes de adulto, mantêm sempre uma certa infantilidade moral e estética na forma como olham o mundo. Kaz Ayabe, director do estúdio Millenium Kitchen, fez do grande objectivo da sua já substancial carreira a criação de videojogos sobre a memória da infância. Memória essa que é a do adulto, e assim por oposição aos videojogos comuns, uma memória que é tudo menos infantil.
Tudo haverá começado com “Boku no Natsuyasumi”, obra que encerra a singularidade única do seu autor e que importa relembrar antes de olhar para a sua aventura mais recente. O trocadilho do título dá o mote à duplicidade brilhante da experiência, podendo ser lido como as “As férias de Verão de Boku”, Boku sendo o nome do protagonista ou, dado que Boku é expressão infantil para ‘eu’ na língua nipónica, “As minhas férias de Verão”.
No papel de um Boku já adulto, somos convidados a relembrar as distantes memórias do Agosto de 1975, revivendo através das páginas do seu colorido diário, as férias passadas no maravilhoso mundo rural do Japão. De forma praticamente livre, podemos explorar um mundo imenso aos olhos do pequeno Boku, escolhendo como passar cada dia das férias, se a passear pela natureza, apreciando os verdes vales cobertos de brilhantes girassóis, se a interagir com família e os amigos ou coleccionando insectos, pescando peixes, voando o papagaio ou batalhando escaravelhos com outros pelintras.
As hipóteses são tão vastas como a imaginação de um menino de 9 anos, que é o mesmo que dizer, infinitas. Todas as acções são plenas em significado e sem objectivos traçados, e como a qualquer criança, importa apenas uma inconsciente forma de carpe diem, o aproveitar de todos os momentos para experienciar algo de tão belo e divertido e memorável quanto possível antes que a água da clepsidra escorra por completo e seja hora de voltar para casa. O tempo voa, dia após dia, e vamos vendo os pequenos rituais de uma família nipónica a viver no campo: o acordar ao som do galo, os exercícios físicos matinais, o Itadakimasu! das refeições em família, o conhecer dos miúdos da vizinhança nas mais rocambolescas tropelias, e sempre o glorioso pôr do sol ao som das cigarras.
No entretanto do dia que passa, vivem-se os momentos mais marcantes e mágicos da infância de um rapaz, aqueles que serão para sempre olhados com nostalgia e uma lágrima agridoce no canto do olho: o comer de um suculento gelado com a família, a imagem do arco-íris deixado por uma chuva de Verão, a orgia de cores e luz do fogo-de-artifício, e como não podia deixar de ser, o palpitar do seu coração puro aquando do avistamento do primeiro amor.
Salta logo à vista o naturalismo presente na portentosa dimensão plástica do mundo que rodeia Boku: ao primeiro relance dir-se-ia tratar de uma animação japonesa de topo. Os cenários desenhados por Ayabe na sua palete de cores riquíssima, possuem uma minúcia e um realismo que roçam o impensável num videojogo, tornando o mundo bem mais palpável e habitável que qualquer arquitectura tridimensional. As personagens de traços naïf de Mineko Ueda (animadora da Ghibli em “Neko no ongaeshi”, o “Reino dos Gatos”) embora de um minimalismo que lembra as primeiras mangas, são de uma expressividade emocional inqualificável e ganham vida aos nossos olhos, permitindo uma completa empatia entre os sentimentos de Boku e os nossos. E como o desenho de jogo serve este mundo com interacções que nunca fogem à realidade de uma criança de 9 anos, podemos dizer que se trata de um dos raros casos no meio videolúdico em que a concepção que governa todo o jogo é naturalista.
“Boku no Natsuyasumi” foi uma revelação. E embora trilhando o caminho de obras anteriores que lidavam com a infância num mundo rural, como o original “Zelda” de Miyamoto ou o “Harvest Moon” de Yasuhiro Wada, o remover da componente lúdica aliado à escrita adulta de Kaz Ayabe e ao seu espirito naturalista, operaram uma autêntica revolução na relação que o jogador tinha com a temática nesses jogos. Ausente da mediação por via de desafios ou antagonismos, somos facilmente empurrados para um espaço mental em que nos relacionamos de forma genuína com a infância de Boku, (vi)vendo assim a nossa sua própria infância disposta no ecrã.
Infelizmente, apesar do resultado ser um dos ambientes abertos mais ricos e interactivamente significantes da sua era, na senda do inolvidável “Shenmue” (lançado meses antes), a obra nunca viu a luz do dia no Ocidente. Não obstante o moderado sucesso comercial na terra do sol nascente, a Sony parece ter cedido à cobardia da pragmática comercial, e achando o título culturalmente intraduzível para uma audiência ocidental (embora hoje tenhamos amplas evidências do contrário), fechou a sete portas uma das obras-primas da idade de ouro do design de jogo japonês.
Entretanto lançaram-se 3 sequelas e uma obra distinta sobre infância (o mal recebido “Bokura no Kazoku” – “A nossa família”, mais uma obra autobiográfica, qualquer coisa como um simulador da educação de filhos) antes que o Ocidente não letrado em japonês pudesse conhecer uma obra de Ayabe. Hoje, sob a capa da série de compilações vídeolúdicas de autor “Guild”, distribuída pela Level-5 na consola portátil da Nintendo, chega-nos finalmente este “Attack of the Friday Monsters! A Tokyo Tale”… e mesmo não sendo uma obra ao nível dos diversos “Boku no Natsuyasumi”, foi uma espera que valeu a pena.
Se em “Boku” o tema da infância era percepcionado por via das memórias das férias, em “Attack!” o tema é percepcionado pelo prisma dos media e da Televisão, e da preponderância que as fantasias aí presentes têm, por via da metáfora e do simbolismo e da magia, em ajudar as crianças a compreender melhor os dilemas da vida e no processo a amadurecer o seu ponto de vista moral. É uma obra que olha com bons olhos as tardes passadas a ver os ‘tokusatsu’ como “Gojira” ou “Ultraman”, pois uma das constantes nestas séries era o subtexto moral, tipicamente sobre os perigos do avanço científico desregrado (por exemplo, nos efeitos que poluição nuclear teria na origem do temível Gojira). E como para combater o mal apenas o bem absoluto serve, os super-heróis destas séries primavam sempre pela pureza de espírito e uma bússola moral afinada, providenciando um muito necessário exemplo a seguir pelos mais novos.
Pois bem, é neste espaço ficcional que se enquadra “Attack!”, um jogo de aventura tipicamente japonês decorrido num subúrbio de Tokyo onde a realidade se mistura com a mitologia dos tokusatsu. Todas as sextas, os Kaiju passam na televisão e atacam a cidade, sempre sob o pouco auspicioso manto de poluição da fábrica local. Sota, filho de um dono de lavandaria, é apenas mais um rapaz que sonha um dia poder vir a ser uma espécie de Super Sentai, e como não podia deixar de ser, apesar da sua história começar com uma simples incumbência caseira dada pela mãe, rapidamente se desenvolverá numa batalha cósmica do bem contra o mal.
Como em “Boku”, tomamos mais uma vez o papel de um rapaz de tenra idade, exploramos uma minuciosamente decorada vila japonesa e habitamos espaços familiares aqui pintados como quadros interactivos, inspirados na melhor tradição da animação japonesa e nas fitas de Ozu (não será por acaso esta uma Tokyo Tale). No entanto, embora a sua génese seja claramente enraizada em “Boku no Natsuyasumi”, houve algumas adaptações com o novo tema em mente.
A estrutura de jogo é mais convencional, organizando-se este em pequenas demandas, cada uma representando um episódio diferente deste tokusatsu, com direito a subtema próprio e narrativa em três actos. Também o coleccionismo de insectos dá a vez a um equivalente mais lúdico: o de coleccionar cartas de Kaiju, usadas para desafiar os amigos num jogo de combates com lógica pedra papel tesoura. Aparte de proporcionar um dos momentos de génio do jogo – o entoar do feitiço mágico que consolida a vitória sobre o derrotado – este mini-jogo é uma actividade mais artificial, menos rica esteticamente, e carente do pendor naturalista que enobrecia o original. “Attack!” reflecte assim uma tentativa de aproximação à audiência mais infantil da 3DS, bem como de causar uma boa primeira impressão no até agora desconhecido público ocidental, sem que isso no entanto desvirtue completamente a essência da autoria de Ayabe.
Por esses motivos, “Attack!” acaba infelizmente por ser uma obra menor. Mas uma obra menor de um mestre, e ainda por cima, a primeira a chegar traduzida em línguas do velho continente, logo sendo totalmente imprescindível de experienciar por todos. De facto, terá sido por mero alinhamento das estrelas que tivemos a felicidade de receber “Attack of the Friday Monsters!” no ocidente. Não fosse “Pacific Rim” o blockbuster mais badalado do Verão que agora passou, e provavelmente não teríamos podido contemplar esta obra bem mais autêntica e representativa do fenómeno que Guillermo del Toro, esse otaku mexicano, traduziu para a linguagem cinematográfica norte americana em versão pipoca desmiolada. Graças a esse acaso do destino, Kaz Ayabe pode finalmente gracear-nos com a sua obra e simultaneamente dar um final feliz à sua trilogia sobre a infância. Sendo um dos autores maiores deste amaldiçoado meio, é caso para festejar e agradecer à Providência por este milagre.
Escrito por: Rui Craveirinha