Um dos aspectos cruciais que distinguem a produção videolúdica nipónica da norte-americana reside na forma como usam o tema enquanto pilar estruturante do design. Enquanto que no ocidente é dada primazia ao valor lúdico da experiência, relegando para segundo plano quaisquer outras considerações, no Japão a dimensão conceptual que o autor deseja imprimir na obra é frequentemente o núcleo do qual derivam todas as decisões criativas.
“Tokyo Jungle” é um título que torna essa característica clara até no título: eis um videojogo que nos diz que Tokyo é uma selva. Aqui, nós, os jogadores-humanos, somos transformados em animais, forçados a habitar numa urbe virada selva onde reina um clima de competição desenfreada e feroz pela sobrevivência, isto é, o adágio darwinista da sobrevivência dos mais aptos virado videojogo.
A alegoria é plasmada numa trama pós-apocalíptica onde, seguindo um desastre de origem desconhecida, a humanidade foi extinta e a Terra invadida por fauna e flora. Embora o texto ficcional eventualmente venha a traduzir a mensagem, é no jogo que a vemos mais elegantemente espelhada. Em “Tokyo Jungle”, o jogador é atirado para as ruínas da grande metrópole, encarnando o papel de diversos animais (spitzers alemães, veados, leões, hienas, etc.) que habitam esta babel destroçada, tomada por vegetação tropical densa e feras de todo o tipo e tamanho.
Como animal, o único objectivo é sobreviver a um dia a dia de conflito em que o perigo espreita por todos os cantos. Membros da mesma raça da do jogador competem pelos escassos recursos disponíveis, disputando território e tentando ficar com as melhores fêmeas. Os predadores tentam-nos caçar sempre que nos encontram, obrigando a uma escolha entre o combate e a fuga, onde a morte paira sempre a poucos segundos de distância. Como se não bastasse, ainda temos de sofrer os efeitos de desequilíbrios ambientais provocados pelo homem, na forma de chuvas ácidas ou temperaturas anormalmente altas.
Viver é uma batalha inglória que nunca termina, com o relógio vital sempre a decrescer a um ritmo frenético, uma música electrónica num ciclo interminável de batidas fervilhantes que apenas cessam quando a morte vem bater à porta. A vida é efémera – e o nosso avatar morre passados poucos minutos de ter nascido; para ficar em jogo é necessário garantir que a prole sobrevive ao seu progenitor. A posteridade é uma dádiva que se encontra apenas ao alcance dos mais fortes, pois para procriar é necessário ter alimento, território, estabilidade, e conseguir atrair uma parceira cujos atributos genéticos melhorem as capacidades de sobrevivência dos seus descendentes, e conseguir tudo isso num mundo cão é algo complicado.
Como auxílio apenas temos uma bizarra colectânea de artigos de consumo que foram deixados pelo homem (de garrafas de água a acessórios para cães, há de tudo), cujos múltiplos efeitos aumentam a probabilidade da sobrevivência do nosso espécime animal. O jogo nunca perde a oportunidade de fazer pouco de nós e acentuar a insanidade do gesto de viver face a tanta adversidade, dando um toque de absurdismo irónico a tudo o que retrata, num gesto de humor que tem muito de auto-reflexivo (afinal, os membros da equipa vivem em Tokyo).
A estruturação do sistema de jogo em torno de uma alegoria explorada de forma rica é o que dá a “Tokyo Jungle” o seu charme, o que não quer dizer que não passe por aqui um desenho lúdico competente na capacidade de entreter a sua audiência. Despido de considerações filosóficas, sobra um brawler arcade elegante com um laivozinho de stealth, que para além de requerer mestria técnica na gestão do fluxo de combate, exige estratégia na abordagem aos inimigos, na conquista de território e na gestão de recursos.
Se há aspecto que se pode considerar negativo neste projecto da Playstation CAMP é tão e somente o facto de o jogo não ter densidade suficiente para aguentar a sua enorme duração. Há um limite para a experienciação da vida sôfrega e masoquista destes animais tão humanos, e uma campanha com dezenas de horas torna essa rotina cansativa e extenuante. Não obstante esse aspecto ser totalmente consistente com o conceito do jogo, não podemos deixar de o criticar, não só porque demonstra um certo laxismo da parte dos autores (o desafio estava em vincar a sua retórica enquanto se elevava o jogador, não o invés), como torna a experiência um mero exercício de repetição lúdica, aproximando aquele que é um jogo singular da inconsequência dos videojogos mais vulgares… mas também aí se vê a marca de um design bem pensado: quando todas as suas qualidades – as boas e as más – são consequência natural de uma ideia que o governa.
Escrito por: Rui Craveirinha