Os japoneses têm, como povo, uma característica bem conhecida – a capacidade de adoptar com facilidade costumes ou práticas estrangeiras. Quando os portugueses chegaram ao Japão em 1543, logo notaram a curiosidade dos japões, a sua insaciável vontade de aprender. Ficaram tão intrigados com o mosquete (as armas dos samurai eram sobretudo as espadas – katana – e os arcos e flechas) que, de imediato, quiseram experimentá-lo e fabricá-lo eles próprios, o que fizeram bastante bem. Mais tarde, a sua mestria nas áreas da tecnologia e do cinema – importações ocidentais – seria notória.
Os japoneses reconhecem esta sua característica de facilmente adoptar o que consideram bom em práticas alheias e chamam-na iitoko-dori. Longe de significar que rejeitam os seus próprios costumes ou práticas, significa antes que os sabem conservar o antigo sem todavia rejeitar o novo. Uma das razões que torna o Japão tão apaixonante é precisamente esta estrutura em camadas que faz prova de uma destreza admirável. De tal maneira assim é que se pode visitar o país experimentando apenas o antigo, pois está lá tudo – a arquitectura tradicional, a cerimónia do chá, os quimonos, as geishas, os festivais tradicionais, a arte da espada, o sumo, o xintoísmo, o budismo, o zen, etc. – ou experimentando apenas o novo, na direcção do futuro – arquitectura arrojada, tecnologia de ponta, música experimental, cidades gigantescas e ultra-modernas, etc. Futuro e passado coexistem no presente de forma quase miraculosa. Deve-se isto à acima referida capacidade de absorção conhecida como iitoko-dori – adoptar os bons aspectos tanto do antigo como do moderno.
A característica iitoko-dori foi bem visível durante as primeiras décadas do século XX, um período pouco familiar da cultura nipónica mas nem por isso menos fascinante que a era dos xóguns e samurai ou a dinâmica do pós-guerra. A capacidade iitoku-dori estava no auge nos anos dez, vinte e trinta do século passado, na era Taisho, o curto período de 15 anos e meio entre 1912 e 1926.
Durante essa era, os japoneses urbanos abraçaram fervorosamente os modelos e atitudes da cultura ocidental, por vezes ao até ao ponto da excentricidade. Surgia então, e com poderosa energia, uma nova sensibilidade. A mudança não provinha apenas do exterior, como durante a precedente era Meiji (1868-1912), mas do próprio interior dos japoneses. E era a juventude quem liderava o processo, um novo tipo urbano que ficou conhecido como mobo e moga, abreviatura de modern boy e modern girl (modaan boi e modaan gaaru, de acordo com a pronúncia japonesa).
Os mobo (モボ) eram rapazes de cabelo farto que frequentavam teatros onde eram exibidas peças de Ibsen, liam romances ocidentais e obras marxistas e assistiam a concertos de música clássica ocidental. Trocavam os quimonos por fatos e os socos de madeira por sapatos de couro. As moga (モガ) eram raparigas que trabalhavam fora de casa, que de modo similar trocavam os quimonos e geta (socos de madeira) por vestidos, saias e sapatos de salto alto da última moda, usavam cabelo curto – quase um pecado mortal na sociedade tradicional – e frequentavam os cafés Art Deco do famoso bairro da moda, Ginza, em Tóquio. Ambos os sexos enchiam os cafés e as salas de teatro e cinema. Cultivavam como maiores aspirações o individualismo e a auto-expressão, algo que parecia em total contradição com o espírito japonês da submissão ao grupo e da supressão do ego. Os mobo e moga debatiam-se entre a sua latente criatividade e a consciência de estarem interligados com o mundo exterior, tornando movediço e ambíguo este período da história do país.
Apesar do travo de optimismo incorporado pelos mobo e pelas moga, tratou-se de um período acossado por várias calamidades e tudo menos pacífico: a Primeira Grande Guerra, o Grande Terramoto de Kanto (1923), a emergência de movimentos de trabalhadores e sua subsequente repressão, os motins do arroz, etc. O país industrializava-se rapidamente. A população agrícola mudava-se para as cidades e Tóquio e Osaka transformavam-se em gigantescas capitais modernas. Varriam-nas novas ideias, como o individualismo, a democracia e o proletarianismo. Tais eventos tornavam consciente o facto de que a modernidade era, também ela, vulnerável.
A arte de então ocupava-se em mostrar essa modernidade, tanto nos seus aspectos brilhantes de vida citadina, como nos seus aspectos mais angustiantes, como a pobreza de certos bairros ou das zonas rurais. Os artistas faziam-no nos estilos prevalecentes nas artes visuais: yoga, influenciada pelo modo de pintar ocidental, o óleo e a aguarela, a perspectiva e o chiaroscuro; ou nihonga, a pintura neo-tradicionalista, a tinta, reacção à moda da pintura a óleo dos finais do séc. XIX. Inúmeros pintores se estabeleciam então nas capitais ocidentais da arte, sobretudo Paris, que fervilhava então de movimentos avant-garde: construtivismo, dada, futurismo, surrealismo…
Os japoneses absorviam-nos a todos e transplantavam-nos depois para o seu país natal, para lá da grande circulação de informação que já existia, sob a forma de livros, imprensa escrita e exposições. A arte tornou-se técnica e conceptualmente experimentalista. Os resultados foram, na sua maior parte, um tanto híbridos e algo como “déjà vu mas de olhos em bico”. Esta era fervilhante terminaria logo a meio dos anos trinta, com o ressurgimento em força do militarismo e do espírito ultra-nacionalista. No entanto, residiu ali o germe de toda a pujança que o Japão exibe hoje – em matéria de arquitectura moderna, design industrial, desenho gráfico, cinema, moda, música e arte em geral. No âmbito da arte, as etiquetas nacionalistas começaram a deixar de fazer sentido, antecipando o que sucede hoje em dia, quando se torna absurdo falar de uma arte americana, francesa ou chinesa. A capacidade iitoko-dori pode, assim, ser considerada um traço “moderno” avant la lettre, já que os nipónicos a apresentam desde há muitos séculos atrás. Os japoneses são modernos há já longo tempo. Talvez por isso se tenham adaptado tão facilmente àquilo que nós, no ocidente, chamamos modernidade.
Ainda hoje, o povo japonês nutre um afecto especial pelos dias brilhantes e frágeis do Taisho Chic, pela sua atmosfera romântica e algo decadente. De tal modo assim é que existem restaurantes e hotéis no estilo Taisho, assim como estúdios de fotografia que cujas fotografias seguem o estilo predominante no tempo. Tsigoineruwaizen é um filme de 1980, dirigido por Suzuki Seijun, que retrata a época. Um filme mais recente, Haru no Yuki (Neve da Primavera), baseado no romance de Yukio Mishima, situa-se igualmente na era Taisho.
Escrito por: Cláudia Ribeiro
Inês Laires
Muito interessante! Obrigado por partilhar!
Ogata Tetsuo
Estamos cá para isso ^_^