A maioria das pessoas vê-se como não violenta, e mesmo em situações de conflito, a opção pela violência só surgiria em casos extremos. Mas qual é o nosso limite de violência? Até onde é que o nosso subconsciente nos deixaria ir? É principalmente sobre a temática da violência que se foca Kyua, de Kiyoshi Kurosawa.
Nesta obra de 1997, o realizador criou uma experiência que, em vez de oferecer respostas, desenterrou mais dúvidas sobre o que nos torna vulneráveis à manipulação e à violência.
O filme segue Takabe (Kōji Yakusho), um detetive que se encontra a investigar uma série de homicídios inexplicáveis. Cada um dos crimes é cometido por uma pessoa comum, sem motivo aparente, mas com um padrão que os une: todas as vítimas têm um “X” esfaqueado no corpo. Tornando-se obcecado por tal pormenor, a investigação de Takabe leva-o a Mamiya (Masato Hagiwara), um homem enigmático com uma estranha capacidade de influenciar as pessoas ao seu redor.
O foco de Kyua não está no “como” ou “porquê” dos assassinatos, mas na desconstrução da mente humana. Mamiya não controla os outros, sugere, e é nessa sugestão que reside o verdadeiro terror do filme. Kyua leva-nos a acreditar que qualquer pessoa, sob as circunstâncias certas, pode perder o controlo das suas ações mais básicas e ser levada ao limite da violência.
Takabe, o protagonista, é um personagem cuja saúde mental se vai deteriorando ao longo da investigação, não apenas pelo caso, mas também pela situação frágil que vive com a sua esposa, que sofre de uma doença mental. À medida que se vai aproximando e descobrindo mais sobre Mamiya, as fronteiras entre a sanidade e a loucura começam a ficar menos nítidas, deixando-o à beira de um desmoronamento psicológico.
Visualmente, Kurosawa faz uso de espaços vazios e uma paleta de cores fria, criando uma atmosfera desoladora. As cenas de violência são mostradas de forma quase casual, com a câmara muitas vezes distanciada, reforçando a banalidade destas. O silêncio é usado de forma estratégica, e os mais pequenos sons tornam-se ensurdecedores, amplificando não só o nosso desconforto, mas também a paranóia e confusão.
Kyua não oferece um final confortável. Em vez disso, Kurosawa desafia o espectador a confrontar a complexidade da natureza humana. O filme recusa-se a fornecer um desfecho claro, deixando no ar uma sensação de inquietação, emergindo assim como uma reflexão profunda sobre o controlo, a sugestão e a natureza do mal.
Através de sua narrativa envolvente e estética cuidadosa, Kyua não conta apenas uma história, mas oferece também uma análise sobre a condição humana, tornando-se um estudo psicológico que nos deixa irrequietos após o seu final. É uma daquelas obras que automaticamente nos motiva a rever, para analisarmos cuidadosamente cada pormenor que nos passou despercebido e para nos tentarmos convencer que, mesmo sob as circunstâncias certas, nunca optaríamos pela violência.
Escrito por: Nuno Rocha