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Nautilus, the ship – Murai Toyonobu

Para chegarmos ao território de Manga Oukuouku, que melhor que tomarmos um transporte híbrido, para atravessar águas não cartografadas no nosso mundo apertado e convencional? Partamos então, zarpemos pois, azulemos avante. Basta um bilhete em quatro partes para o Nautilus.

No panorama mais ou menos desértico de edição de banda desenhada japonesa de maior qualidade em Portugal, sobretudo de trabalhos mais gekiga, desejo falar-vos de uma aposta inédita e fabulosa a que a Bedeteca de Lisboa se entregou. No primeiro semestre do ano de 2001, foi publicada na íntegra um trabalho inédito do artista Murai Toyonobu, intitulado em inglês Nautilus, The Ship. A aposta é inédita pois esta foi uma estreia mundial. Nunca tinha sido publicado antes.

Murai Toyonobu é um artista multidisciplinar residente em Londres desde 1993, e que estudou no atelier de Tom McCay, conhecido professor americano de ilustração, de onde se formaram Terry Morgan, uma outra artista que mereceu destaque internacional pouco antes da sua infelizmente não inesperada morte, e da qual poderão descobrir algum do seu trabalho num volume publicado faz anos pela Assírio & Alvim, Nem Sempre Fada, e ainda o português Tiago Manuel, ilustrador também famoso em círculos mais restritos no país, de quem se pode apreciar as páginas ilustradas da última Colóquio/Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian (no.157/158).

Toyonobu nasceu em Osaka, onde se alimentou numa dieta diária de manga, anime e toda a cultura japonesa a que nos habituamos nos contactos ligeiros através das várias artes. Filho de mãe japonesa e de pai americano, partiu com os pais para Chicago em 1965, com dez anos. O seu interesse pelas artes gráficas foi precoce e contínuo, ainda que talvez disperso, como se buscasse o caminho exacto para se expressar. O resto da história é um pouco obscura, mas vemo-lo emergir já possuindo um estilo próprio e peculiar, da formação com McCay. Como é indicado na capa interior desta publicação, emprega-se no restauro de velhas ilustrações, na fotografia – especialmente de bairros industriais, ou acasos urbanos (o que recordará essoutro poeta gráfico do mesmo tema, Peter Blegvad). Outro projecto que se deu a conhecer ao público português aquando do Salão Lisboa 1999 foi o de Tango, uma série de ilustrações que glorificava essa dança, através de uma imagética copiosamente singular. Há uma entrevista ao autor feita num dos Contador-Mor, a newsletter da Bedeteca de Lisboa (no. 13, Julho a Setembro de 2001) onde poderão descobrir mais pontos interessantes da biografia de Toyonobu.

Nautilus, the ship começa com uma breve introdução ao seu universo histórico, o futuro, pois passa-se em 2005. Apesar do protagonista ser no fundo o próprio nvio de recreio ultra-sofisticado Nautilus, que até se converte em submarino em caso de tempestades ou em couraçado em caso de ataque de piratas do mar, este não é o típico manga que se perde em demasia com explicações pormenorizadas deste mecha central. Apesar da estrutura ser mais ocidental e experimental do que as manga produzidas no Japão, a entrada na acção deste conto é imediata, e os próprios desenhos (tenham em conta as linhas e o movimento das ondas!!) não pretendem dar a ideia de rapidez, mas antes de uma fluidez espessa, lenta….

Muitos dos enquadramentos, ou sobretudo a temática constante, desprovida de seres humanos na cena visível, relembra mais a fotografia industrial. Como referimos atrás, este facto não será demasiado surpreendente se tivermos em conta que Toyonobu se dedica a outras artes, sendo a fotografia, precisamente a industrial ou a de espaços urbanos, uma das delas, tendo publicado inclusive em Londres um livro pequeno, intitulado Scratch Shops (pela Nequam Vacuum, Londres 1997), dedicada sobretudo a lojas que vendem material para pintores, fotógrafos e artistas visuais em geral, entre as cidades de Osaka, Kobe, Tóquio, Londres, Chicago e Portland, com as quais diz sentir mais afinidades visuais. Assim, é-nos algo difícil não o associar a expoentes desse campo exclusivo, como Margaret Bourke-White ou o casal alemão Hilla e Bernd Becher.


Todo o livro é a preto e branco, com os fundos carregados de negro, ou antes com o céu branco com simples linhas como nuvens ou ainda, as mais das vezes, um intricado trabalho de tracejados, em que os fundos das rochas, os céus tempestuosos as sombras, constroem-se numa renda profusa de linhas que adensa a tensão desejada pelo autor. Mas esta é uma tensão contida. Soará a disparate, mas parece que tudo se move com a velocidade típica (dos humanos) debaixo da superfície da água, também igual à de algumas sequências dos nossos sonhos. O Nautilus atravessa consecutivamente pequenas aventuras, ainda que tudo integrado num quadro maior de acção. E ainda que haja momentos de pausa na progressão da história, e momentos de grande contraste com o ambiente regular da obra (veja-se na curtíssima analepse das duas páginas, quase finais, do volume 4), há um contínuo frenesi que nos garante que algo se tece de grande por detrás da fachada inicial… O que se confirmará nos dois últimos volumes.

Sobre essa tensão, repare-se na última página do volume 2, em que aparece um avião militar de nenhures e sem outra explicação, fechando esse capítulo. Este tipo de suspense pouco deve ao costumeiro choque final de uma parte da história, que nos deixa em frenicoques em esperar pelo próximo livro. Bem pelo contrário, é quase uma espécie de anticlímax a frequência com que os novos dados e informações vão sendo introduzidos. Mesmo quando se descobrem as experiências que se fazem com humanos no laboratório dos “inimigos”, esse reconhecimento máximo não se nos apresenta como um choque, mas ants como uma esperada parte do puzzle.

Não é difícil entender que o autor pretenderá com esta obra exibir o navio Nautilus como uma metáfora de alguns sectores da humanidade. A forma como se dirige a certos temas – os pecados de excesso da ciência, a forma de imiscuir da política, a protecção de menores países por potências militares, a irrevogável superioridade da natureza sobre a obra humana, etc. – é sinal confirmador. O que de certa forma nos recordará atitudes mais clássicas da bd japonesa, com as obras de Tezuka.

É óbvio que se esta fosse uma obra publicada no Japão, no seio das milhões de histórias curtas que se espalham por milhares de publicações todos os anos, seria algo de pouco notável, talvez nem a descobríssemos… Mas Nautilus, the Ship é de facto uma obra de algum mérito, de qualidade acima da média, ainda que provavelmente seja algo que interessará a um público mais reduzido do habitual da manga. E a Bedeteca apenas merece os parabéns por colocar como principal objectivo a divulgação de obras assim, em vez de se preocupar com propósitos meramente numa lógica de sistema económico de mercado. O que, já o dissemos aqui, não existe sequer em Portugal no que concerne à banda desenhada.

Autor:Pedro Vieira Moura

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