Num planeta Terra futurista onde a raça humana convive lado a lado com seres cibernéticos, Tetsuro, um jovem rapazinho, vê a sua mãe ser assassinada pelo sanguinário Conde Mecha, um ser humano portador de um corpo-máquina que lhe confere a imunidade às doenças e ao envelhecimento. Tetsuro torna-se um vadio das ruas de Megalópolis, mantendo acesa a esperança de, um dia, conseguir juntar dinheiro para embarcar no lendário comboio inter-espacial Galaxy Express 999 (pronuncia-se “three-nine” e não “novecentos e noventa e nove”) de modo a que consiga chegar ao planeta Andrómeda, onde se distribuem gratuitamente corpos mecânicos tão poderosos como o de Conde Mecha.
Um dia, Tetsuro tenta roubar um passe para o cobiçado comboio, e é durante a sua fuga que é salvo por Maetel, uma mulher de uma serenidade e de uma beleza divínais que, porém, é estranhamente reminiscente da sua mãe. Ao tomar conhecimento da história do jovem rapaz, Maetel oferece-lhe um passe para o Galaxy Express, com a única condição de que ela o acompanhe como guia. Tetsuro aceita e embarca assim numa viagem que, mais do que um simples percurso pelo universo, representará o seu crescimento pessoal à medida que vai conhecendo personagens que o marcarão, situações que o colocarão à prova e a realidade por vezes amarga da vida.
Datado de 1979, Galaxy Express representou, juntamente com outros títulos cimeiros da época, um importante passo em frente na maneira como os japoneses viam a sua própria animação, tendo sido determinante para mostrar aos produtores que o anime também conseguia seduzir os públicos adolescentes e jovens-adultos. Adaptando sabiamente o argumento da primeira saga do manga de Leiji Matsumoto (o filme foi feito enquanto a série ainda estava a ser publicada), o argumentista Shiro Ishimori realiza a proeza de compactar as histórias de diversas personagens em apenas duas horas de película conseguindo, porém, manter viva toda a poesia épica do seu autor original.
Mas o seu texto só tem o folgo que tem graças à realização de Rintaro, que assina aqui o seu primeiro trabalho para o grande ecrã após mais de uma década a trabalhar para a televisão com um “savoir-faire” e uma segurança que nem todos sabem mostrar numa primeira obra. Se hoje a animação, da responsabilidade da Toei Animation, poderá parecer severamente limitada (consideração que não incomodará os nostálgicos e que não faz justiça nem à qualidade que tem para a época em que foi realizado nem aos belos desenhos de Kazuo Komatsubara), o facto é que o tempo não conseguiu diluir aquilo que sempre foi o mais importante nesta obra: a história e as personagens.
O comboio “Expresso da Galáxia” é aqui uma metáfora sobre o amadurecimento, sobre a enorme viagem que é a vida, e nas duas horas que o filme dura conseguimos, realmente, ver Tetsuro evoluir e crescer como pessoa. O que começa como uma simples e bastante directa história de vingança desenvolve-se numa alegoria sobre a sede de imortalidade que pode levar o ser humano a abdicar da sua humanidade, bem como o desejo que pode surgir de se voltar a trás quando se conhece o tédio da eternidade (patente, sobretudo, no notável segmento passado em Plutão).
A diversidade de povos e de mundos, cada um não só com raças diferentes mas com sistemas políticos distintos, assim como algumas personagens realmente inesquecíveis como o Tochiro, a enigmática Shadow, a Rainha Emeraldas ou o Capitão Harlock enriquecem substancialmente a narrativa, sendo crucial para a sua composição o trabalho dos actores de voz, de onde é de ressaltar as notáveis interpretações de Nozawa Masako como Tetsuro (que alguns fãs em Portugal melhor conhecerão como a responsável pela voz de Son Goku na trilogia Dragon Ball) e Ikeda Masako como a celestial Maetel.
Atente-se, aliás, ao foco dado à relação Tetsuro-Maetel, talvez uma das primeiras abordagens do complexo de Édipo no campo da animação. Tudo isto ao som da magnífica música sinfónica de Nozomu Aoki, que casa com os visuais de Matsumoto em absoluta harmonia.
Numa época em que “A Viagem de Chihiro” vem demonstrar que a animação japonesa tem muitas pérolas escondidas à espera de serem descobertas pelo espectador, “O Expresso da Galáxia” serve de excelente exemplo do que é que andamos a perder há mais de trinta anos.
Um clássico no verdadeiro sentido do termo, a conhecer a todo o custo.
DVD – EDIÇÃO PORTUGUESA
O DVD da New Age Entertainment vem munido de uma excelente imagem (para a época a que o filme foi feito, a qualidade das cores quase que sugere que se trata de produção recente!) e de um som que, embora seja só Dolby Digital 2.0., está absolutamente fantástico.
Os mais cépticos ficarão contentes de saber que, ao contrário do célebre DVD de “Harlock – o Pirata do Espaço”, a faixa de áudio japonesa está imaculada, sem nenhum das estranhas “interferências” que amaldiçoavam este último.
É de constatar a inexistência de uma versão dobrada em português, algo que provavelmente não chateará ninguém. Quanto a extras, limitam-se a uma biofilmografia do autor Leiji Matsumoto (idêntica à que se pode encontrar no disco de Harlock), uma pequena galeria de imagens e às trailers de “Harlock – o Pirata do Espaço” e “Hols – o Príncipe do Sol”.
Escrito por: Ricardo Gonçalves