Provavelmente poderemos considerar a cinematografia japonesa como daquelas que mais reflecte com maior paixão os pequenos detalhes da sua sociedade e inerente mutação psicológica dos seus intervenientes quando confrontados com ela.
Mais do que a aproveitar para avançar com as histórias, os filmes japoneses metem aí todo o destino das suas personagens, o resultado entra num misto de exótico com interesse ou curiosidade para muitos de nós, espectadores ocidentais, mas também ajuda-nos a compreender a reacção daquelas pessoas, porque são tão frias, tão calorosas, tão tristes, tão felizes, tão simples.
“Nobody Knows” de Hirokazu Koreeda é talvez o zénite dessa constante abordagem sociológica mas torna-se, ao mesmo tempo, o filme mais afastado do pensamento comum japonês. Baseado-se num caso verídico que se passou em 1988 em Tóquio em que 4 crianças de pais diferentes foram abandonadas pela mãe prostituta no seu apartamento sem que os locatários ou qualquer um dos vizinhos soubesse da sua existência, a odisseia acaba por terminar com a morte da irmã mais nova.
Koreeda pega neste episódio para criar uma nova história (a legenda no começo do filme revela que, embora baseado em factos verídicos, as personagens e situações são fictícias) que começa quando a mãe (interpretada pela actriz YOU) chega a casa com o filho mais velho, Akira (Yûya Yagira) levando clandestinamente, dentro das malas) os outros filhos. A vida dentro do pequeno apartamento rege-se sob uma série de regras, os filhos não vão à escola nem estando mesmo, nenhum deles, registados como cidadãos japoneses, três deles não podem sair nem à varanda sob pena de serem vistos e terem que mudar de casa. Akira, o mais velho, passa o dia a cuidar dos irmãos, comprando comida e fazendo o jantar para estes.
O repentino desaparecimento da mãe obriga não só a Akira a sobreviver com os irmãos sozinho mas também Hirokazu Koreeda a decidir que tom prefere dar ao filme. Se até então a personalidade acolhedora e divertida de YOU dava algum reconforto aos espectadores e às crianças que tinham nos pequenos momentos com ela o pânico instaura-se em nós quando esta sai de plano. Pânico e ira para contra esta personagem deplorável que abandona os filhos, com ela vão os pais, dois deles, que conhecemos e que nos fazem perder toda a esperança. Estas duas abordagens poderia fazer com que Koreeda apostasse numa segunda parte depressiva e pesada nas suas intenções, admita-se, estivessemos na Europa ou no domínio do cinema independente americano e teríamos aqui pano para mangas para uma triste história de quatro vidas perdidas.
Mas ao invés somos surpreendidos com pequenos sorrisos. É verdade que se deixa sempre um ligeiro espaço de manobra para se retratar a injustiça e tristeza deles os quatro, principalmente quando confrontados com outras pessoas – os amigos que Akira, a certa altura, faz, etc. – mas o realizador está mais interessado em mostrar a inocência que advém dali. Akira, por exemplo, é o mais velho e luta com tudo o que pode para poder dar o melhor aos irmãos, não pode trabalhar por ainda só ter 12 anos de idade, não pode pagar as contas da casa nem fazer muito mais do que já faz, no entanto é incapaz de roubar ou de aceitar dinheiro que uma amiga lhe dá depois desta se prostituir. Os outros irmãos são movidos por pequenas alegrias, Kyoko diverte-se com desenhos e a comer, devagarinho, os seus chocolates preferidos, Shigeru é um irrequieto que não vê a miséria à sua volta. Excepção, neste caso, talvez a Kyoko, a irmã mais velha. Mais ligada à mãe e a um sonho de um dia poder comprar um piano e poder ir à escola.
Em passeios pelo parque e plantar plantas em casa, os 4 irmãos conseguem atingir um ideal de vida único talvez só reforçado pela entrada de Saki, uma jovem estudante negligenciada pelas colegas da escola e que acaba por encontrar os amigos que pensava não ter nestas quatro almas perdidas.
Ironia, talvez, que também está inerente no título do filme – «Nobody Knows» – não está só ligado à vida clandestina deles mas mais propriamente a todas as personagens (os «amigos» de Akira, Saki, os empregados do supermercado, os pais, a mãe) com quem eles interagem e que na verdade sabem tudo…mas nada fazem.
Voltamos aqui à maior característica social da cinematografia japonesa. Voltamos a encontrar a frieza ou os sentimentos ocultos. O fim è assim mesmo, uma massa agridoce de nostalgia e tristeza antes de, no plano final, nos sentirmos confortados.
O filme acabou por fazer um impacto enorme no Japão principalmente por levantar a questão das crianças abandonadas. Iguais a Akira, Kyoko, Shigeru e Yuki existem muitas mais, provavelmente milhares, que ainda não estão registadas e vivem sozinhas em apartamentos clandestinos. O caso acabou por levar a questão a debate e descobrir o impacto social de uma atrocidade destas.
Medidas começaram a ser tomadas para impedir mas vendo que estes abandonos são feitos por mulheres prostitutas que engravidam mas não querem perder os seus clientes que, em muitos dos casos, são homens casados que se recusam a apoiar, de alguma forma, a mãe.
Ultima abordagem para os actores. Yûya Yagira na pele de Akira tira uma interpretação de bradar aos céus e decididamente meritória do prémio que ganhou de melhor actor em Cannes. Com apenas 12 anos na altura (em 2003) é o actor mais novo a arrecadar este prémio. Tudo pela enorme profundidade da sua interpretação, claro que esta frase soa a cliché mas a verdade é que nunca duvidamos das suas intenções ao mesmo tempo que ele mantém um carácter misterioso referente aos seus verdadeiros sentimentos. Um poderoso primeiro papel que eleva a fasquia bem alto para este actor que agora, com 15 anos, está-se a tornar famoso no Japão com a participação em Doramas e outras séries e ainda num filme estreado em 2005 em que ele foi o actor principal.
De diálogos sobre a existência de Totoro, estudantes que jogam Dragon Ball na playstation, salas de Pachinko e videojogos, o distanciamento dos japoneses nos problemas dos outros, prostituição, prostituição adolescente, estudantes negligenciados e outros muito crueis, «nobody knows» não é só outro retrato do Japão moderno e mudado mas uma abordagem longínqua, privada, sóbria, como uma pequena brincadeira no parque.
Imperdível.
Autor: Francisco Silva