Para muita gente o nome Toshiro Mifune instantaneamente remeterá para uma imagem mental de um Samurai de olhar ameaçador e empunhando uma katana. De facto essa será a sua ‘imagem de marca’ na cultura popular do século XX, aquela que muitos admiradores ainda revêm vezes sem conta em filmes como “Sete Samurais” ou “Yojimbo”.
Sanchuan Minlang (o nome chinês de Mifune), nasceu a 1 de Abril de 1920, filho de pais japoneses emigrados na Manchúria, na altura um enclave japonês na China, nunca tendo visitando o Japão até ter sido alistado na força aérea japonesa, no início da Segunda Guerra Mundial, quando tinha 20 anos.
Desde cedo, o soldado Mifune desenvolveu uma revolta contra o sistema militar japonês e sobretudo contra o idealismo cerrado dos oficiais, que exteriorizava de uma forma agressiva perante os seus superiores, agressividade essa que ficaria mais tarde registada sobretudo nos seus papéis mais ‘viscerais’, sobretudo nos filmes de Kurosawa. Essa violenta revolta, que muitas vezes se traduzia em discussões verbais acesas e tentativas de agressão física a oficiais terão poupado a vida a Mifune, que em 5 anos de carreira militar terá sempre ficado fora de qualquer promoção de carreira, o que implicava não poder participar em missões aéreas mais arriscadas, as mesmas que dizimaram esquadrões inteiros durante esse conflito mundial.
Desde cedo Toshiro Mifune revelou uma predilecção por Fotografia, a profissão do pai, interesse que manteve durante o seu período militar e que o levou a concorrer a uma vaga de emprego como assistente de camera na Toho, na altura a maior companhia de cinema japonesa, logo a seguir à Guerra.
Desmobilizado da Força Aérea, logo após a derrota do Japão, e apenas com a roupa que tinha no corpo, Mifune encontrava-se perdido em Tóquio e sem grandes esperanças de encontrar emprego e por isso, quando chamado ao estúdio para prestar provas, nem sequer hesitou. Nasce aqui a lenda do mais conhecido actor japonês do Século XX, quando, segundo alguns biógrafos e amigos, a candidatura de emprego foi mal direccionada e acabou por ir parar ao concurso de castings para novos actores. Reagindo de forma violenta às perguntas do juri de selecção, muito por culpa do mal entendido com a sua candidatura de emprego, Mifune chamou a atenção a Kajiro Yamamoto, um dos realizadores mais conhecidos do estúdio e a um dos mais promissores jovens realizadores, Akira Kurosawa, que viu daquela figura rebelde e expressiva o seu alter-ego nas películas que iria realizar das quais Roshomon, Os Sete Samurais, Yojimbo e Kumonosu-jo (conhecido no Ocidente através do seu ‘título americano’ Throne of Blood) catapultaram o realizador e o seu actor favorito para a fama mundial.
As qualidades expressivas de Mifune, raras no cinema nipónico até aquela data, criaram uma ‘escola’ na forma de representar, extremamente imitada e plagiada, quer no Japão, quer posteriormente na Ásia, na Europa e nos Estados Unidos. Uma das histórias de ‘back stage’ que costumam contar sobre o estilo de representação de Mifune é aquela do ‘calculista’ e influente Sergio Leone, que terá exigido a Clint Eastwood para estudar a forma fria e ameaçadora como Mifune se movia em Yojimbo, de forma a criar a personagem de Joe em “Por um Punhado de Dólares”, filme que de resto gerou a Leone muitos dissabores com Kurosawa, já que se tratava de um plágio do argumento de Yojimbo. Este estilo próprio de representar um ‘good bad guy’, como lhe chamou Eastwood posteriormente, marcou para sempre todo o cinema, do Western Spaguetti ao cinema de acção de Hong Kong.
Obviamente que muito deste estilo de representação, nem sempre encarado como brilhante, (sobretudo por alguns ‘pouco qualificados’ críticos americanos de cinema da altura que viam em Mifune um ‘John Wayne japonês’ de talento menor), foi crescendo à medida que Kurosawa moldava com precisão todos os leading role que Mifune representou em filmes do realizador, ao todo 16 entre 1948 e 1965. Aquele que projectou Mifune para a fama fora do Japão terá sido “Roshomon”, vencedor do Festival de Veneza em 1953, dando também a possibilidade a Mifune de participar em filmes produzidos em outros países, algo nem sempre bem visto pelo ‘protectivo’ Kurosawa.
Talvez por isso, e causando admiração entre fans e críticos de cinema simultaneamente, ambos decidiram em meados dos anos 60 de não colaborar mais em qualquer projecto juntos, dando a Mifune mais espaço para seguir a sua carreira em papéis mais arriscados sem a interferência crítica de Kurosawa. Filmes como “Grand Prix” (de John Frankenheimer, 1968), “Hell in the Pacific” (John Boorman, 1968) ou “Red Sun” (Terence Young, 1972) consolidaram a sua fama mundial. Entretanto, os papéis de Samurai que representou para Kurosawa colocaram Mifune na lista de actores de referência para a nova geração de cineastas americanos dos anos 70, donde podemos destacar Steven Spielberg (que o convidou para um papel no seu genial e esquecido “1941”, de 1979) ou George Lucas, que inicialmente pensou em Mifune para o papel de Obi Wan Kenobi em “Star Wars” (1977).
Em cerca de 126 filmes para cinema e 17 filmes e série para televisão, Mifune revelou que não era apenas um actor perfeito encarnar a figura de samurais de olhar severo ou herói carrancudo. Mifune interpretou yakuzas, médicos (como numa das suas maiores interpretações de sempre, a do Dr. Barba Vermelha, no filme com de Kurosawa com o mesmo nome), de vagabundo, empresário ‘self made man’, de polícia, de Herói ‘low life’ mexicano (no bizarro “Ánimas Trujano (El hombre importante)” do mexicano Ismael Rodriguez), pirata, militar, bandido, caçador de tesouros, marinheiro, figura mitológica, protagonista de filmes românticos e ocasionalmente figurante ou com papéis secundários em várias comédias ligeiras e filmes de salarymen e claro, inúmeros “cameos” em dezenas de filmes ao longo das últimas décadas da sua carreira.
Muitos destes filmes, onde participou apenas por pressões contratuais e posteriormente para salvar da falência o estúdio que criou em 1963, a Mifune Productions, revelavam também muitas vezes facetas menos conhecida do actor, como a de extrema humildade com que encarava a sua profissão e o risco que gostava de viver, mesmo quando arriscava a sua estabilidade financeira, ajudando realizadores que procuravam furar o difícil “establishment” do cinema japonês, como Kihachi Okamoto (realizador do violentamente belo “Samurai”, de 1965, mais conhecido como “Samurai Assassin”).
Quando morreu, na noite de Natal de 1997, Mifune tinha já encontrado a imortalidade na figura do Samurai de olhar penetrante, marcando para sempre o cinema mundial e gerando e propagando muitos dos mitos e linguagens da cultura nipónica por todo o mundo.
Leitura recomendada:
The Emperor and the Wolf – The lives and films of Akira Kurosawa and Toshiro Mifune, Stuart Galbraith IV, Faber and Faber, 2001
Autor: Nuno Barradas