Kimitake Hiraoka, mais conhecido como Yukio Mishima, figura controversa das letras nipónicas do século XX, acabou Tennin Gosui (A Ruina do Anjo), último volume da tetralogia Hōjō no Umi (O Mar da Fertilidade), na madrugada de 25 de Novembro de 1970. Horas depois cometeria o suicídio ritual do Bushido no Ministério da Defesa em Tóquio, perante o olhar espantado do Comandante das Forças Armadas japonesas, sequestrado por Mishima e os membros do seu grupo Radical Tatenokai (A Sociedade do Escudo).
Hōjō no Umi é um dos mais completos sistemas de auto-análise encontrados na literatura mundial do Século XX, espelhando a vida, física mas também interior, de um dos escritores mais controversos do século XX. Mishima, nessa altura já um escritor aclamado não só no Japão, como também nos Estados Unidos e na Europa, sobretudo pelo ‘auto-biográfico’ Kamen no Kokuhaku (Confissões de uma Máscara) de 1948, encontrava-se à já alguns anos numa constante luta estética com o seu corpo físico (Mishima tornou-se um atleta depois dos 30 anos, praticando de forma maniaca vários desportos e sendo um mestre de Kendo), com a sua relação com uma ‘morte heróica’, que perseguia insistentemente, e sobretudo numa busca espiritual para alicerçar a sua complexa individualidade.
Hōjō no Umi foi escrito durante 1964 e 1970, sendo a obra que Mishima escreveu de forma a explicar toda a sua personalidade, tentando de alguma forma ‘apagar’ os seus anteriores escritos, marcados por um Romantismo ocidental, que gerou tanto fascínio como repúdio junto dos leitores e dos académicos nipónicos.
Os quatro volumes do Mar da Fertilidade descrevem a vida de um advogado, Xiguecuni Honda, obsecado em encontrar a reencarnação de um amigo de infância, Quioáqui Matsugae, depois da sua trágica e romântica morte.
Haru no Yuki (Neve de Primavera), o primeiro volume, descreve as hesitações e caprichos do frágil Quioáqui, sempre observados por um racional e metódico Honda, até à sua morte, causada pela recusa de abdicar do amor a uma amiga de infância, que Quioáqui tinha desprezado anteriormente de uma forma visceral, após esta ter sido prometida ao Imperador e posteriormente aderido a um convento.
Honba (Cavalos em Fuga), apresenta-nos um Honda já adulto e com uma carreira promissora, em constante busca para descobrir a ‘verdade’ sobre o paradeiro espiritual do seu amigo de infância, encontrando a reencarnação de Quioáqui em Xigueiuqui Ínuma, um jovem idealista praticante de Kendo, apostado em viver a sua vida de uma forma heróica para restablecer os ‘velhos tempos’ da grandeza adquirida através do rígido Código do Samurai. Ínuma, que também tem uma morte trágica e heróica, conduz o leitor, através da presença do ‘omnipresente’ Honda, pelo pensamento e modo de agir de muitos dos vários grupos e irmandades conservadores, normalmente sediados em escolas, que marcaram os conflitos políticos antes da Segunda Grande Guerra, oferecendo um complexo retrato de uma parte da sociedade, conservadora e ainda presa ao código de conduta de um Japão já desaparecido na Revolução Industrial e que se recusava a abdicar das formas mais patrióticas da tradição Xintoista, que depois teria o seu apogeu com a propaganda de guerra.
Akatsuki no Tera (o Templo da Aurora), continua a ‘saga’ de Honda, que neste terceiro volume, procura de uma forma insistente o alicerce das suas teorias de reecarnação ue permitiriam re-encontrar o seu amigo de infância, tornando-se um pesquisador ávido do Budismo, que o leva em romaria até Benares, na India, já durante a Grande Guerra, de forma a conseguir desocultar a presença de Quioáqui, aparentemente agora presente através de uma sensual princesa Tailandesa. Neste volume, talvez o mais ‘isotérico’ dos quatro sem no entanto perder o seu pendor ‘intimo’e muitas vezes erótico de toda a série, Mishima descreve todo um sistema de crença que marcou toda a última década da sua vida, que culminou com o seu suicídio, dando um retrato realmente perturbante do escritor em todo o seu fulgor sinbólico e estético, que se sentirá com o culminar da história de Honda, em Tennin Gosui.
Tennin Gosui (A Ruína do Anjo) é um apógeu caótico da história, quando um já ancião Honda, fisicamente decadente e cada vez com mais dúvidas existênciais, apadrinha um jovem faroleiro, Toru Iasunaga, na desesperada procura. Embora a busca de Honda aparente ter sido satisfeita, Toru, que se vai revelando primeiro como um jovem promissor e depois como uma criatura calculista, densa e caprichosa, leva o já debilitado Honda a reencontrar, já no final da história, a velha monja, outrora o grande amor de Quioáqui, para confirmar que toda a sua volátil busca foi apenas uma deabulação entre impossíveis certezas, num mundo com pouco valor existêncial e que sofre convulções niilistas, onde tudo passa pela vida humana sem qualquer garantia de ficar.
Lirismos à parte, os quatro volumes do Mar da Fertilidade descrevem de uma forma única todas as imensas vivências interiores de Mishima, descevendo as suas crenças religiosas, estéticas, físicas e existênciais de uma forma que tem tanto de fulgurante como de complexo e incerto, correndo o leitor por um mundo pessoal com uma profunda angústia, apenas para chegar a conclusões existenciais alicerçadas no vazio Zen.
Mishima, que deixou estes quatro volumes como um espelho da sua personalidade, revelada através das várias personagens que enchem os quatro volumes, nunca conseguiu, após a sua morte, um reconhecimento académico, muito devido às suas ‘excêntricas’ actividades (chefe de um grupo extremista de contornos estéticos Nazis, actor, modelo para fotografias que tem tanto de tétrico como de erótico), e afastou potênciais leitores pela sua conotação com um universo homosexual, prontamente reclamado pelas comunidades Gay ao redor do mundo.
Mas de facto, toda a obra de Mishima está para lá de qualquer conotação fascista ou homosexual explícita, sendo esta tetralogia em especial, uma reflexão existêncial da vida de um escritor, que viveu as problemáticas do Século XX japonês, até aos anos 60, tendo sempre em fundo os vários momentos chaves, desde as reformas da época Meiji e a resistência do nacionalistas no início do século, os incidentes políticos internos, marcados também pela permanência do Japão na Manchuria, a 2ª Guerra Mundial e posterior ocupação americana e terminando nas constestações e conflitos entre os conservadores e a crescente adesão dos estudantes aos ideários comunistas, numa sociedade que já se afirmava num fulgor capitalista.
Yokio Mishima é um autor que é necessário redescobrir, agora que são assinalados os 35 anos da sua morte, de uma forma despretenciosa e sem as condicionantes geradas ao longo destas últimas décadas.
Hōjō no Umi (O Mar da Fertilidade), foi editado em português entre 1986 e 1988 pela Editorial Presença, na sua colecção Novos Continentes.
Autor:Nuno Barradas