Os muitos estilos das contra-culturas japonesas dariam material suficiente para centenas de filmes e ainda mais histórias. Lolitas, gothic-lolitas, ganguro, yanki, o que quiserem. Existem muitos estilos, cada um com as suas próprias regras, as suas próprias nuances e cada um pode dar desculpas para obras até mais não.
Mas ter em conta a contra-cultura que estamos a representar será preciso saber como bem fazer esse filme. Qualquer uma destas realidades se baseia sob uma ideologia estética que ultrapassa a simples « representação » de um grupo de adolescentes, necessita mesmo que todo o filme reflicta nas suas opções estéticas e no seu tema a contra-cultura escolhida.
Shimotsuma Monogatari traz à tela o universo das lolitas, os seus desejos, manias e pequenas particularidades deste grupo. Segue-se a história de Momoko(Kyoko Fukada), uma jovem lolita que mora nos confins de uma pequena aldeia japonesa onde toda a gente compra roupa no mesmo supermercado e ela é o único espécimen das lolitas nas redondezas. Entre sonhos sobre o Rocococó, a França dos anos da abundância e do Barroco e desejos de vida de princesa, Momoko passeia-se sozinha pelos seus cenários enquanto conta a história fatalista da sua família: o pai era um bandido falhado que um dia conhece uma bela mulher com quem tem uma filha, o médico que assistiu o parto de Momoko acaba por se apaixonar pela mãe desta que parte, anos depois, com ele para vida nova. Ainda adolescente e já interessada no estilo lolita, Momoko e o pai vão viver com a avó numa remota aldeia japonesa. Momoko torna-se então ainda mais isolada das pessoas que a rodeiam e faz dos vestidos, que compra em Tóquio na sua loja preferida (Baby, the stars shine bright), vai sozinha ao seu café preferido onde ouve musica clássica da época barroca e alimenta-se somente de coisas doces. Particular, e muito.
Finalizamos nesta altura a primeira parte do filme sem surpresas e com um ténue fio narrativo. Por enquanto somos só atraídos pelo exotismo de Momoko e pelas informações que recebemos sobre o estilo de vida dela, mas é pouco e o filme arrisca-se a perder potência.
Tal chega somente quando Momoko conhece Ichiko (Anna Tsuchiya), umaYanki (membre de um gang de motards) que se prepara para se despedir da carismática lider do seu grupo que se prepara para casar. Contra tudo o que é convencional, Momoko e Ichiko fomentam uma estranha amizade e desenvolvem laços de confiança entre as duas. Daqui parte o mais interessante « leit motif » do filme: e se uma lolita dos confins do Japão travasse amizade com uma Yanki? Cenário impossivél se fossemos perguntar aos verdadeiros membros dos dois grupos, para as lolitas as yankis são rudes e violentas, para as yankis as lolitas são mimadas e fúteis.
Os dois fenómenos contrastam-se nas regras com que se regem mas o realizador Tetsuya Nakashima consegue bem caracterizar as duas personagens e os seus verdadeiros objectivos, aproximando-as sem estranheza.
Mas é nesta altura que chegamos à consideração que ao filme falta verdadeiramente uma história, uma razão, um porquê. Está certo que nos entretemos, principalmente com as divertidas narrações de Momoko, mas parece pouco, parece frágil. É aí um típico filme de « forma sobre conteúdo », visualmente agradável e cheio de cenas únicas dentro do contexto global. Percebe-se porquê. Em vez de se manter longe dos dois universos, encosta-se cuja a visão reflecte mais a personagem principal, predominam os cor-de-rosa, os brancos com folhos e saias majestosas.
A apoiar Momoko e o seu « mui particular » mundo está o trabalho de arranjos da compositora Yoko Kanno que tem um registo clássico-infantil, doce e pouco amargo assim como o mundo recriado e o imaginário idílico. É claro que não estamos numa realidade credível mas a relação entre as imagens, as musicas, o trabalho das actrizes e Tetsuya Nakashima fazem-nos crer sem uso de uma «suspension of disbelief».
Talvez o que salte mais à vista no carácter de entretenimento visual são as cenas de animação que por duas ou três vezes o filme nos mostra. Não são género estético-violento como em Kill Bill mas de uma ingenuidade e inocência interessante, parecem mais desenhos das “powerpuff girls” ou não seria Momoko uma rapariga que tenta guardar toda a sua inocência quanto ao seu reflexo social o mais que pode.
E mesmo com tudo isso há que dar graças a Tetsuya de, numa história de amizade impossivél e inesperada, não se perca em sentimentalismos irritantes ou dramas que não interessam a ninguém mantendo sempre um registo « cool » demais para não nos deixar um sorriso escarrapachado na nossa cara.
No fundo, « Shimotsuma Monogatari » acaba com um resultado positivo, mesmo com tudo o que pode ser dito contra ele. Os/As fãs do universo Lolita vão ter aqui uma obra de grande referência que não quererão negligenciar, o comum dos mortais sai agradecido por cerca de 100 minutos de entretenimento agradável que nunca ameaça a nossa inteligência (e não é aí onde a maioria das histórias de adolescentes de outras cinematografias falham?).
Claro que em círculos intelectuais onde a visão de cinema é reduzida a meras deambulações filosóficos para elites, este filme seria massacrado ou, na pior das hipóteses, considerado um clássico filme japonês de extremo desinteresse onde a forma pastiche e kitsch prevalece sobre uma fragilidade narrativa. Nesses não acreditem e veja este « Shimotsuma Monogatari » de mente aberta e descansada.
Autor: Francisco Silva