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Ping Pong

A ideia de ver um filme sobre um desporto como ping-pong poderá não ser apelativa à grande maioria dos espectadores de cinema, mesmo aqueles que vêem no ‘novo cinema asiático’ um excelente escape à falta de ideias nos blockbusters americanos. Mas “Ping Pong”, filme de estreia de Fumihiko (ou Sori) Masuri é um dos filmes mais cativantes de um género cinematográfico e televisivo extremamente popular junto do público japonês (refiro-me aos filmes sobre desportos), prendendo ao ecrã mesmo aqueles que têm total aversão à prática desportiva com espectaculares efeitos especiais e acção frenética, combinados com uma história com alguma profundidade narrativa, algo nem sempre presente em filmes de temática semelhante.

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Realizado em 2002, “Ping Pong” é uma adaptação comercial do popular manga de Taiyo Matsumoto com o mesmo nome, que relata as mudanças nas relações entre dois amigos de infância, o irreverente e desbocado Peco (representado por um dos actores mais ‘visíveis’ da nova geração do cinema japonês, Yosuke Kubozuka) e um calado e tímido Smile (representado por Arata), quando confrontados com a hipótese de tornarem o seu hobby de sempre (o ténis de mesa) numa carreira profissional. Peco, que sempre teve talento mas pouca disciplina para conseguir progredir, começa a dúvidar da sua aparente mestria no Ping Pong quando é derrotado de forma humilhante por China (Sam Lee), um Pro que não conseguiu lugar na selecção chinesa e que emigrou para o Japão para conseguir ascender no campeonato local. Simultaneamente Smile, que sempre manteve um low-profile perto de Peco, deixando-o sempre ganhar todos os jogos que jogaram juntos, começa a treinar intensivamente, encorajado pelo treinador Butterfly Joe (Naoto Takenaka), um antigo campeão caído em desgraça, para conseguir destronar o invencível e fanático Dragon (interpretado por Shido Nakamura, um actor de Kabuki e estrela do aclamado Rinjin 13-gô/Neighbour No. 13).

Sem querer revelar muito mais, a história irá desenrolar-se pondo em causa muito dos pormenores que cimentavam a amizade de ambos, envolvendo o espectador numa narrativa onde se assiste à desilusão, à vitória, ao reforçar e ao destruir de mitos e clichés desportivos (existe mesmo uma cópia à célebre cena da escadaria de “Rocky”), e até mesmo à chegada ao Satori budista de uma das várias personagens que construem uma das fábulas desportivas mais interessantes que o cinema nipónico nos deu.

Como já foi referido o filme está construido sobre as elaboradas performances desportivas, todas realizadas com estonteantes efeitos especiais, mas consegue ganhar interesse para além das cenas de acção. Masuri, até aqui um consultor de efeitos especiais (segundo parece fez parte da equipa de efeitos especiais do piroso “Titanic”) joga no seu ‘elemento natural’, filmando toda a acção em video digital, mas sem cair no deslumbramento perigoso de ‘infestar’ o filme apenas com espectaculares cenas produzidas através de CGI, tendo tido especial cuidado na adaptação ao complexo (em termo narrativos e de personagens) manga de Matsumoto, mesmo quando a cadência da estrutura narrativa (que até ao meio do filme se apresenta lenta e introspectiva), não é vantajosa (aparentemente) para o formato cinematográfico.

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Mesmo sendo tão fiel à obra que deu forma ao filme, “Ping Pong” consegue ser visionado perfeitamente sem qualquer ligação ao manga, algo nem sempre conseguido de forma tão total e independente em adaptações de comics e anime (estou-se a lembrar do caso particular de “Nana” de Kentarô Ôtani, estreado em 2005 e que parece estar dependente de um público já conhecedor do manga de Ai Yazawa para conseguir gerar o culto que já se faz sentir).

A interpretação mais relevante do filme é claramente para Yosuke Kubozuka (que ficou conhecido com “Laundry” de Junichi Mori), a quem personagens ‘expansivas’ calham sempre bem (basta ver o posterior Madness in Bloom para entender isso), mas todas as interpretações conseguem acompanhar bastante bem o ritmo da personagem de Peco, mesmo os secundários aparentemente sem grande relevo (como YosiYosi Arakawa, aqui num inevitável papel de comic relief como quase todos os outros que costuma fazer em cinema e dorama), cumprindo eficientemente os papéis das várias personagens que vão circulando à volta da história de Peco e Smile, e que valorizam ainda mais o filme.

Mesmo parecendo por vezes algo ‘poupado’ na caracterização das personagens (nota-se isso sobretudo na personagem de Smile, que é algo ‘obscurecida’ pela já referida entusiástica performance de Kubozuka/Peco), Masuri consegue transportar a essência dos cinco volumes de Ping Pong de uma forma bastante fiel, quer em termos visuais e narrativos (praticamente um ‘espelho’ do manga), quer na relação entre as várias personagens, sobretudo a ambígua e longa relação de amizade entre as duas personagens principais, vivendo o filme mais do ‘existencialismo’ que a obra de Matsumoto transmite do que dos inevitáveis efeitos especiais. Vários pormenores narrativos e flashbacks na história foram respeitados (através de uma montagem de filme apreciável) e mesmo pormenores simbólicos ou alegóricos que Matsumoto usa na sua obra foram aproveitados, como a magnífica cenas de Butterfly Joe com as asas de borboleta ou o uso nos uniformes de Peco e Smile de uma estrela e de um crescente lunar, respectivamente, uma metáfora às personalidades de ambos e à sua relação.

Embora não seja directamente um filme de ‘efeitos especiais’, Ping Pong foi ‘apresentado’ ao público como uma espécie de ‘Matrix do Ping Pong'(!), termo, segundo parece, inventado por alguns críticos de cinema ocidentais pouco habituados ao cinema asiático e que tinham já tido oportunidade de ver o aparatoso mas pouco relevante “Shaolin Soccer” (de Stephen Chow) um ano antes e a quem parecia que “Ping Pong” seguiria o mesmo caminho.

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De facto a comparação, infeliz e injusta, não faz juz ao que esta obra contém, sendo considerado quase unanimemente um dos filmes comerciais mais interessantes a ter saído do Japão nos últimos 5 anos e uma das melhores primeiras obras de um realizador japonês dos últimos anos.

Resta apenas aconselhar a ver (e rever como pessoalmente faço com alguma regularidade) este filme para entender que existe muito mais para além do cinema comercial japonês do que cinema de terror que mais tarde ou mais cedo será sujeito a um remake americano ou a simples adaptações de manga ou anime (com sucessívos updates por vezes) apenas para agradar aos já inevitáveis fans de qualquer fandom particular ou para rentabilizar um produto comercialmente vezes sem conta. E para aqueles que possam não se sentir particularmente impelidos a ver este filme devido ao seu tema central, acreditem que depois de o fazer nunca mais verão o Ping Pong como um simples desporto inconsequente que apenas serve para passar o tempo durantes as férias.

Escrito por: Nuno Barradas

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