Escrito em 2001, “Um grito de amor desde o centro do mundo” é o segundo livro de Kyoichi Katayama (片山恭一) e tornou-se rapidamente num tremendo sucesso de vendas no Japão, sobretudo depois da famosa actriz Kou Shibasaki (Battle Royale, Dororo…) ter falado publicamente do livro dizendo que este a tocou profundamente levando-a às lágrimas em vários momentos. O livro vendeu mais do que o top dos best-sellers de Haruki Murakami, Norwegian Wood. Um sucesso que já lhe valeu adaptação a manga por Kazumi Kazui e a cinema pelo sul-coreano Jeon Yun-Su com o título inglês “My girl and I” ainda que o título do mesmo filme em japonês tenha sido adaptado para “僕の、世界の中心は、君だ” que se pode traduzir por “Tu és o centro do meu mundo”.
Há uma certa problemática que ainda não compreendi muito bem. Aparentemente, o autor começou por designar o livro por “恋するソクラテス”, ou seja, “Sócrates apaixonado”, por isso a VIZ Media quando editou a obra nos EUA atribuiu-lhe o nome “Sócrates in Love”, mas por algum motivo, em edições posteriores, o livro recebeu a designação de 世界の中心で、愛をさけぶ, “Um grito de amor desde o centro do mundo” que é uma referência ao livro de contos de Harlan Ellison “Crying Out Love in the Center of the World”. “Um grito de amor desde o centro do mundo” é este mês editado pela Alfaguara. Esta edição não traz na capa nenhuma referência à edição através do qual foi traduzido nem deixa explícita a língua que serviu de língua de origem para a edição portuguesa, o que é lamentável.
O livro de Katayama é um drama que se assume logo nas primeiras páginas. Sabemos que há uma morte e sabemos que há uma perda, não há suspense, o leitor sabe à partida qual é a temática das cerca de duzentas páginas seguintes, a reflexão sobre a morte e sobre a perda. O sucesso de vendas não lhe retira autenticidade, é uma história simples e autêntica sobre o contacto humano com a morte, sobre o seu conformismo ou falta dele, reflexões simples que mesmo simples não são de modo algum superficiais. Há um contexto juvenil povoado por personagens adolescentes. Sakutaru Matsumoto é um jovem de dezasseis anos apaixonado pela colega de turma, Aki Hirose, que corresponde a essa paixão. Contudo, Hirose acaba por padecer de uma doença que a conduz à morte. A forma como Sakutaru lida com toda a situação de primeiro namoro simultaneamente condenado a uma experiência traumática e perturbadora é o foco do livro.
Eu diria que o livro tem uma índole profundamente “japonesa” sem querer cair em nenhum tipo de pré-concepção, mas há de facto uma linha orientadora muito ligada às suas origens culturais. Isso deve-se às sucessivas referências directas a escritores japoneses – o nome de Sakutaru é logo mencionado por um personagem como sendo também o nome do escritor Sakutaro Hagiwara – ou referências à cultura anime e manga – por como exemplo no momento em que a personagem principal compara a sua amada à Nausicaa de Miyasaki. Mas há algo de mais transcendente e difícil de exteriorizar. A forma aparentemente linear como tudo ocorre, é dramático mas não há um vendaval de emoções enérgicas ou violentas a trespassar as personagens nem as suas acções, todos os cenários possuem uma naturalidade tão simples que quase se torna difícil explicar a sua dimensão perturbadora, sempre tão presente, sempre tão visceral e real. O livro não se baseia em nenhuma história verídica nem disso necessita pois verídica é a realidade da morte, ou melhor, a realidade de existir transportando uma perda ou as várias perdas que podem cravar-se em cada construção individual da realidade.
Outros factores mais concretos convergem para a caracterização deste espaço japonês, as referências aos rituais xintoístas, a prática das artes marciais de origem japonesa (kendo e judo), e um ponto extremamente simbólico que é o do nome de Aki Hirose cujo kanji de Aki é 亜紀, enquanto Sakutaru pensava que seria 秋, uma vez que a leitura destes kanjis é homófona mas no segundo caso significa “Outono”, só que Saku não sabia porque Aki costumava escrever o seu nome utilizando apenas o silabário katakana (aparentemente em moda entre os jovens japoneses). Um outro ponto alto do livro centraliza-se na relação de Saku com o seu avô que serve de suporte de fundo com uma história semelhante à do jovem personagem e que é uma personagem recorrente para transmitir o balanço da sabedoria quando o neto se deixa consumir pela violência adolescente do vazio (no seu sentido niilista). O avô representa uma sabedoria ancestral e é a personagem com a qual se debaterá o conceito de “amor”, na sua acepção metafísica, que é o segundo grande tema do livro. A morte e o amor.
Uma abordagem sensível, realista que sugere uma visualização cinematográfica, apesar das suas prolepse e analepse que seriam facilmente explicadas com formato de “flashbacks”. Um drama, na minha perspectiva, bem conseguido que vem dar-nos a conhecer uma nova figura em afirmação das letras japonesas.
Autor:Sara F. Costa