Ah, eis uma recordação do passado não-tão-recente…
«As Misteriosas Cidades de Ouro» (versão francesa) estará concerteza para muitos de nós como um dos primeiros programas que farão parte da nossa memória, em termos de anime. E não é para menos: dotado de uma história cativante e fora do vulgar, se bem que familiar para qualquer criança, ainda pode fazer sombra aos animes infantis que se produzem em massa nos dias de hoje. É por isso que merece menção aqui, na forma de um artigo.
Há alguma dúvida, porém, de que se trate mesmo de um anime? Se houver, seja logo dissipada: «As Misteriosas Cidades de Ouro» foi planeado por uma estação pública nipónica, a N.H.K., sob o nome de «Taiyou no ko Esteban» (Esteban, o Filho do Sol), baseado numa obra de Scott O’Dell, escritor de contos juvenis.
Diz quem leu que apesar de lá também haver um Mendoza, um Esteban, uma Zia, e a busca pelas Lendárias Cidades de Cibola, as semelhanças ficam-se por aí… e nem é uma obra particularmente interessante. Bom, estavam os senhores da N.H.K. já acordados com os Estúdios Pierrot (Kogepan, Key The Metal Idol, Fancy Lala, Naruto) para a animação, quando os franceses se juntam ao projecto… E neste aspecto, embora as fontes sejam maioritariamente francesas, caso sejam objectivas concluimos que só temos a agradecer esta intervenção tardia, já que parece que veio beneficiar bastante o resultado final: as naves e demais elementos tecnológicos terão sido melhorados, o look das personagens foi tornado ligeiramente mais familiar às audiências europeias, e claro, como era costume, foi da versão francesa que se fizeram todas as versões não-orientais.
Como já lá vão uns anitos (a estreia em França foi em Setembro de 1983, e em Portugal algures entre 1985 e 1987, sendo posteriormente repetidas, sendo a última vez no velhinho «Agora Escolha!», já nos anos 90), convém rever o enredo… No século XVI, o português Fernão de Magalhães, ao serviço da Coroa Espanhola, circum-navega o globo pela 1ª vez. Perto do estreito que hoje em dia toma o seu nome encontra, durante uma tempestade, um barco prestes a afundar-se, com apenas dois passageiros, um homem e o seu filho bebé… um marinheiro tenta salvá-los, mas tendo uma vaga afastado o pai, só o filho é recuperado, e é considerado órfão… nesse instante, a tempestade cessa e no céu passa a brilhar um sol radioso.
Anos mais tarde, por ocasião da morte do seu pai adoptivo, o menino, agora com 12 anos e de nome Esteban, reencontra o marinheiro, Mendoza, por intermédio de uma medalha que trazia já no dia do seu primeiro encontro. Este crê que ela é uma pista para as Lendárias Cidades de Ouro, escondidas algures no Novo Mundo e morada de infinitas riquezas, que nem o conquistador da Nação Inca, Francisco Pizarro, conseguiu encontrar, e partem para lá.
Esteban encontra na sua viagem dois outros companheiros de raças distintas… Zia, uma jovem inca que desconfia das intenções dos Espanhóis, e Tao, que se diz descendente do povo de Mu, há muito desaparecido e dono de avançadíssimas tecnologias, e suposto construtor das Cidades. Infelizmente, nem só amigos Esteban fará na viagem… além da ganância dos caçadores de tesouros, terá de se haver com os Olmeques, uma tribo aparentada com os de Mu que, em vias de extinção, busca a todo custo perpetuar a sua raça, tendo para isso que alcançar… as Cidades de Ouro.
Para alguém que procura o seu pai no século XVI não está mau, hem? Sem dúvida uma narrativa que ultrapassa o estritamente necessário para agradar a crianças… Na vida real, existiu mesmo uma tribo chamada «Olmeques», desaparecida antes de Colombo chegar às Caraíbas. Existiu de facto uma lenda sobre cidades de ouro no séc. XVI, atrás das quais morreram muitos exploradores, quer na Flórida, quer nos Andes, quer na Guiana, quer no Texas(!). Existiram personagens como Magalhães, Pizarro, e outras mais… Mas não, o Continente de Mu foi uma invenção de um oficial americano, pura ficção. Tudo isto para fazer notar como o enredo d’«As Misteriosas Cidades de Ouro» resulta de uma mistura muito bem estruturada e conseguida de factos reais, mitos célebres e da fantasia dos argumentistas. Mais que isso, nota-se a ausência de algo frequente hoje em dia: os grandes volte-faces e aspectos surpreendentes não estão todos concentrados no início (o que favorece um desenrolar da acção sem surpresas) nem no fim (o que por vezes acaba por resultar numa história quase diferente da original); não, aqui temos as novidades repartidas pelos 39 episódios da série, com um final agradavelmente surpreendente.
Outra benesse que o toque francês trouxe foi sem dúvida nos aspectos técnicos. Para a época, «As Misteriosas Cidades de Ouro» está bem animado, com a arte japonesa a beneficiar do zelo francês, mas de modo nenhum a prejudicar o character design, ainda nitidamente oriental. Já o som e a dobragem são outras histórias: o sucesso superior que o anime teve por cá pode ser atribuído ao impecável genérico e músicas a que teve direito. Combinações inesquecíveis de coros, sintetizador e instrumentos tipicamente peruanos providenciam um ambiente inca extremo. Músicas feitas não com o objectivo de serem lançadas em disco (ainda se fez uma compilação em vinil e cassette) mas para serem usadas apenas uma vez ou duas… um investimento exagerado, talvez, mas a N.H.K. esteve à altura: música mais modesta, é certo, mas acrescentou ao final de cada episódio um curto documentário sobre a Expansão espanhola (aliás, «Conquista»), modo de vida dos povos pré-colombianos, etc… Alguém se recorda se passaram no nosso país?
Talvez seja da cooperação franco-nipónica, ou talvez fruto do acaso, mas este anime foi desenvolvido com aspectos que ultrapassam nitidamente a faixa etária a que se destina. É que a luta do «Bem contra o Mal» é apenas fachada para as diversas motivações dos diversos personagens em chegar às Cidades de Ouro. Note-se que só os personagens terciários sofrem da «febre do ouro», buscando simplesmente a fortuna… é a ganância que os move: os espanhóis e a dupla Marinché/Dr. Laguerra. Todos os outros são definidos como «os bons» ou «os maus» não através dos motivos que os levam a buscar as Cidades Perdidas, mas COMO visam atingir esse fim. Os Olmeques querem evitar a extinção da sua tribo graças à tecnologia quase perdida de Mu… a propagação da espécie é a mais básica das necessidades, e contudo os métodos brutais utilizados definem-nos rapidamente como vilões na série. E os jovens heróis? Esteban tem esperança de encontrar um pai que provavelmente se afundou no Atlântico; Zia é obrigada a ajudar os espanhóis; Tao, por sua vez, segue uma profecia do seu pai. Motivações menores, é certo, mas não recorrem à violência para chegar ao seu objectivo… logo, «heróis». Ou pelo menos «heróis» pela forma como conseguem escapar às contrariedades e, por vezes, corrigir as acções nefastas dos oponentes. Finalmente, temos o caso dúbio de Mendoza… protege as crianças o tempo todo por amizade ou por interesse próprio? Só mesmo vendo a série e tirando as próprias conclusões.
Uma curiosidade interessante é que consta que a versão francesa dá raras e subtis pistas em relação a um assunto em que a japonesa é muito mais explícita: esta versão faz nítida alusão a uma suposta origem extraterrestre dos povos de Mu, logo dos Olmeques. É um pormenor irrelevante, sobre o qual não se chega a nenhuma conclusão em particular… Pessoalmente, creio que a abordagem francesa resulta melhor.
Podemos assim esperar três coisas d’«As Misteriosas Cidades de Ouro»… Antes de mais, um marco na história da animação, lembrando o apogeu de uma era de cooperação franco-nipónica que já tinha começado com «Ulisses 31». Segundo, uma obra muito familiar, e que provavelmente orientou grande parte do nosso gosto em relação a anime… e finalmente, uma série agradável que, mais ou menos, ultrapassa em enredo o que hoje em dia se produz para as faixas etárias mais jovens. Inclusive já se falou em sequela, projecto para o qual se retrairam, no último momento, os principais investidores. Quem sabe no futuro? Afinal, como disseram a Esteban no final…
Retoma o caminho da Aventura… existem no Mundo 6 outras Cidades de Ouro, ainda maiores que esta!
Autor:Guilherme Mendes