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Cowboy Bebop: Tengoku no Tobira

Alva City, Marte, vésperas do Halloween de 2071. Ao perseguir um hacker com a cabeça a prémio, Faye Valentine (Hayashibara) cruza-se com um indivíduo que provoca uma violenta explosão numa artéria movimentada da cidade e desaparece sem deixar rasto. Além de elevada mortandade, o atentado liberta um organismo cuja natureza as autoridades não conseguem identificar e que causa a hospitalização de um grande número de cidadãos. No interior da nave Bebop, Spike (Yamadera), Jet (Ishizuka) e Ed (Tada), assistem às reivindicações de um suposto terrorista que ameaça prosseguir os ataques contra a cidade. As investigações levam os caçadores de prémio na pista de um homem chamado Vincent (Isobe Tsutomu) e de uma corporação.

«Cowboy Bebop: Knocking on Heaven’s Door», rebaptizado «The Movie» para o lançamento nos EUA, talvez para evitar confusões de direitos de autor relacionados com a canção de Bob Dylan, situa-se cronologicamente entre os episódios 22 e 23 da popular série de TV japonesa. A informação não é relevante no sentido de ser necessária para situar a audiência, implicando que quem não esteja familiarizado com a série não possa entender plenamente o ponto de partida do filme. Não é assim, de todo, pois a presente obra é plenamente estanque, a nível narrativo, ainda que os cineastas não percam tempo com a necessidade de “apresentar” as personagens, inserindo dados redundantes para os espectadores da série de TV.

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A série “Cowboy Bebop” (1998) já era profundamente “cinemática”, tanto na concepção visual, como na própria estrutura dos episódios – alguns dos quais assumidamente baseados em obras cinematográficas, como o número 11, que emula «Alien» –, de modo que não havia propriamente uma forte curiosidade sobre o modo como Watanabe Shinichiro iria conceber um “episódio” cinematográfico. Além do mais, a grande qualidade da animação e o cuidado posto na concepção de alguns episódios, também teriam de reduzir necessariamente a sensação de que estarmos perante algo muito melhor, no que aos aspectos formais diz respeito. Em todo o caso, partir para o visionamento de qualquer filme – seja de animação ou de imagem real – com expectativas assentes meramente em aspectos técnicos não é uma atitude que favoreça a sua apreciação. Posto isto de parte, convém esclarecer que o orçamento superior e o diferente ritmo de produção permitiram, naturalmente, um maior refinamento da animação e uma maior atenção ao detalhe.

Watanabe é um realizador de animação com uma visão de cinema que aproveita as vantagens do meio e não se deixa prender pelas suas desvantagens. As vantagens óbvias são a concepção de cenas difíceis de conceber em imagem real (com base no conceito que toda a animação é um “efeito especial”). Uma desvantagem da animação (tradicional) é que a câmara é fixa e todo o movimento é concebido de forma artificial, com recurso a computadores ou desenho a desenho, mas aqui, como noutros trabalhos do realizador, consegue-se transmitir ao espectador a presença da lente, a captar a acção in loco. Watanabe recorre a toda a espécie de movimentos de “câmara”, em cenas de acção ou estáticas, por modo a acentuar determinado efeito dramático, bem como a efeitos “ópticos” de zoom ou a desfocagem, natural quando o operador é surpreendido por algo e não teve ainda tempo de o enquadrar e focar correctamente. Tome-se, como ilustração, o primeiro contacto de Faye com Vincent, ainda envolto numa aura de mistério, e o modo como a câmara – ou o ponto de vista de Faye – procura o rosto dele ou ainda as sequências que ilustram a visão nebulosa, próxima da morte, das vítimas do vírus. A execução de um destes efeitos é ilustrada no making of de «A Kid’s Story» (uma das curtas “Animatrix”) e a sua simplicidade é surpreendente: uma sequência animada é manipulada através do rato de um computador, conferindo-lhe um aspecto de câmara à mão. O projecto dos irmãos Wachowski, aliás, será o filme-autocolante de Watanabe (é inevitável que qualquer lançamento dos seus filmes, novos ou antigos, leve com “do realizador de Animatrix” coladinho na capa).

O excelente resultado final de «Cowboy Bebop: Knocking on Heaven’t Door» não assenta naturalmente no talento de um único homem (nem o cinema é, por natureza, a arte de um indivíduo isolado, ainda que existam excepções, puras ou aproximações). Além da produção ter recorrido a uma infinidade de estúdios de animação – japoneses, mas também coreanos e chineses (a ficha técnica parece não terminar) –, Watanabe é secundado por um realizador de animação de acção (Nakamura Yutaka) e outro de animação mecânica (Goto Masami), além do director geral de animação (e designer de personagens) Kawamoto Toshihiro. Nada é deixado ao acaso e todas estas vertentes do filme são brilhantemente executadas, com uma perfeita harmonização entre elas. Na verdade, por comparação com a generalidade dos filmes de artes marciais mais recentes, afectados por alguma hollywoodização, produzidos num ou noutro continente, «Cowboy Bebop» apresenta uma óptima coreografia nos combates corpo-a-corpo. Spike tem treino em Jeet Kune Do, a arte marcial desenvolvida por Bruce Lee, e os animadores conseguem capturar alguns movimentos físicos típicos do actor, em particular os passos de “dança” que precedem um dos confrontos.

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Com Jet relegado para os bastidores, depois da cena de abertura, o filme centra-se nas movimentações de Faye e Spike, por diferentes cenários e em oposição directa a duas personagens cujas motivações demoram a tornar-se claras, respectivamente, Vincent e Electra (Kobayashi Ai). Não se perde muito tempo a construir emparelhamentos românticos casuais, mas não se deixa de insinuar algumas possibilidades (noutro tempo, noutro lugar, quem sabe). A acção física surge naturalmente inserida no fluir da acção, mas há uma sequência de combate aéreo que parece algo desnecessária. Há um bom equilíbrio entre um tom sério, com alguns laivos filosóficos, e algum humor slapstick ou a vertente de uma animação mais irreal e “cartoon”, substanciada na personagem de Ed. O vilão, ainda que, em abstracto, possa fazer lembrar os típicos megalómanos de algum destroy-cinema, querendo aniquilar o mundo inteiro (no caso, Marte), é mais complexo do que numa primeira análise possa parecer, em particular quando se nos dá a conhecer melhor, à medida que a narrativa se desenvolve.

Alva City, o cenário onde a história decorre, é uma megalópole, cultural e etnicamente diversificada, com bairros e zonas típicas das grandes cidades (algumas cenas passam-se num bairro marroquino, que apresenta escadarias que poderiam pertencer à Mouraria ou Alfama, em Lisboa). A linguagem escrita é muito diversa, com emissões televisivas a apresentarem suporte nas duas mais universais (inglês e chinês). Fica por saber se é suposto que o japonês se tenha tornado a língua de eleição do futuro ou se é suposto abstrairmo-nos dessa questão (isto é, tratar-se-ia da língua de produção do filme/série não necessariamente a língua “real” que as personagens estão a usar). Em todo o caso parece um raciocínio algo preguiçoso e dificilmente sustentável defender a qualidade da dobragem em inglês (é surpreendente o número de pessoas que a afirmam superior à pista original, mesmo entre os que declaram que normalmente preferem as VOs) com base em estarmos, supostamente, num mundo anglófono. Não é certamente o caso.

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«Cowboy Bebop: Tengoku no Tobira» é um bom filme de acção, sem cedências à sua origem televisiva, sobrevivendo perfeitamente como objecto isolado. Tem poucas ou nenhumas relações com o estilo “abonecado” da mais popular animação ocidental ou da menos interessante animação japonesa. Só uma grande falta de habituação a obras de animação com esta complexidade é que pode estar na origem de questões algo absurdas como aquela com que deparamos no número de Setembro, da genericamente respeitável revista britânica Sight & Sound, no texto assinado por Andrew Osmond. O crítico questiona-se porque é que uma história tão “hiper-realista” e tão pouco “cartoony” não foi produzida em imagem real. Respondendo à sua própria pergunta, arrisca dizendo que seria para melhor salientar o melodrama “larger-than-life” da história. Se confundir animação com um “género” não é infrequente no espectador casual, para quem um filme animado é uma forma de passar algum tempo com os miúdos e que associa automaticamente a animação a cinema infantil, apto para visionamento familiar (80 minutos de inconsequências, números musicais, Mal e Bem muito bem definidos e comic-relieves concebidos de acordo com o seu potencial de bonecos de peluche ou brindes num restaurante de fast-food), não se entende como é que tal equívoco é expresso por um profissional, nas páginas de uma revista conceituada.

Uma palavra final (muito) positiva para o tratamento dado pela Columbia ao filme (não será apenas por ser japonês como a companhia mãe, a Sony): a única alteração – se é que merece, sequer, tal definição – foi um título inglês banal simplista, em substituição do título oficial original, que acompanhou as cópias em festivais de cinema. É uma pena que a atitude não seja partilhada pela Disney e suas subsidiárias, quando adquirem títulos estrangeiros. Com a entrada em cena da Dreamworks, que já adquiriu «Milleniun Actress», de Kon Satoshi, e a sequela de «Ghost in the Shell», esperando-se a disponibilização generalizada das versões originais desses filmes, pode ser que a companhia do Rato Mickey acabe por mudar de métodos de trabalho.

Escrito por: Luis Canau (www.asia.cinedie.com)

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