Se o acto de alguém se debruçar sobre obras de ficção pode ser considerado uma forma de escapismo, que se pode dizer sobre ficção relativamente realista sobre quem se dedica à ficção? Talvez seja uma boa oportunidade para auto-reflexão, e bem-disposta como poucas neste caso.
Genshiken baseia-se no manga homónimo de Kio Skimoku e acompanha um grupo de personagens unidos por um clube universitário dedicado a várias formas de fandom – na mesma faculdade existem já grupos dedicados ao manga e anime, mas os protagonistas não parecem ter uma dedicação exclusiva a qualquer das artes, e por uma variedade de circunstâncias encontram-se unidos num clube fundado para fazer a ponte entre os outros dois – a Sociedade para o Estudo da Cultura Visual Moderna (no original “Gendai Shikaku Bunka Kenkyukai”, abreviado para “Genshiken” – sem dúvidas mais discreto e respeitável que dizer “nós vemos desenhos animados”…) – ou por outras palavras, um meio de um grupo de pessoas tentarem dignificar minimamente o facto de gostarem de coisas como manga, anime, jogos, figuras coleccionáveis, cosplay e o que mais houver de relacionado com esses interesses, e ao mesmo tempo encontrarem outros com quem partilhar esses hobbies.
Se não é a primeira obra a abordar como tema os próprios fãs, é possivelmente das que o trata de maneira mais terra-a-terra – se outros animes anteriores cobriram o processo de fãs passarem de consumidores a protagonistas das suas próprias aventuras surreais ou produtores da sua própria ficção, no Genshiken esses temas estão longe de ser centrais à história geral, e até são algo que os personagens tendem a evitar – do elenco inicial só um desenha, e envergonha-se demasiado da própria obra pra admitir que esta seja vista por outros.
O que sobra então? Fica a série resumida a ver um grupo de pessoas entretidas com os seus mangas, animes, jogos e afins? Também, mas não só – e é em tudo o mais que acontece (ou não) que está o charme e “factor zen” do Genshiken. A história inicialmente acompanha dois personagens muito diferentes em paralelo, e a maneira como estes descobrem o Genshiken ao entrar na faculdade: Kanji Sasahara aproveita o novo ambiente para tentar encontrar outras pessoas que partilhem os mesmos hobbies, mas parece relutante em admiti-los de forma tão “pública” perante outros, e quase parece sentir-se intimidado pelos conhecimentos mais especializados dos membros dos clubes de manga e anime; já Saki Kasukabe não só não tem interesse nesse tipo de coisas, também não parece ter interesse em envolver-se em qualquer dos outros clubes académicos mais “tradicionais” como o de astronomia (à volta dos quais parece girar a vida social de quem a eles se junta) – num dos primeiros dias do novo ano lectivo encontra na faculdade um antigo amigo de infância, Makoto Kousaka, que inicialmente não reconhece mas que lhe chama a atenção pelo aspecto comparável ao membro de uma boys-band, e com quem tenta criar uma relação… mas cedo descobre que tem nos hobbies dele uma fortíssima concorrência.
É através do Kousaka que ambos os personagens acabam por frequentar o Genshiken, embora por motivos muito diferentes, e desse modo temos acesso a visões muito distintas do mesmo fenómeno.
Em parte, o próprio conceito do Kousaka como personagem é dos pontos menos fortes da série, sendo mais um “plot device” que uma personagem credível – se por um lado se apresenta com um visual cuidado e quase próprio de um modelo em conjunto com um sorriso constante, por outro parece ter uma fixação quase autista com os seus hobbies, mesmo perante os avanços mais claros da Saki (mesmo quando eles já são um casal “oficial”) – que apesar disso se mantém sempre com ele, por mais que pareça lamentar-lhe a atitude. Os pontos caricatos a que esta dinâmica chega acabam por ser dos momentos mais memoráveis da série – ninguém esquece o cosplay de Puyo-Puyo! Estando a relação Saki-Kousaka ao serviço de manter na estória um ponto de vista menos favorável sobre as actividades (ou falta delas, dependendo do ponto de vista) no Genshiken, não podemos descurar os membros do clube já nele presentes no pricípio da série.
É incontornável mencionar o Harunobu Madarame – embora não tenha resposabilidades oficiais no grupo no princípio da série, normalmente vêm dele muitas das iniciativas e da motivação, e a atitude dele perante os hobbies pode sem dificuldade ser considerada estóica – detalhes como a fome ou lesões não o impedem de marcar presença ou de gastar dinheiro no que lhe interessa, e o fervor com que defende os hobbies não é menor. Por vezes chega a ter “pancadas” mais próprias de personagens ficcionais, ora citando clássicos como o Gundam, ora inventando ele próprio frases recorrentes e maneirismos, como se ele próprio se quisesse tornar um como modo de reforçar a individualidade – mas mais tarde na série se verá quem esteja mais “perdido” nesse aspecto. Alguns dos momentos mais interessantes na séries são os confrontos dele com a Saki, visto que têm pontos de vista diametralmente opostos.
O Tanaka é provavelmente o membro mais activo do grupo, embora de uma maneira completamente diferente da do Madarame – ele juntou-se ao Genshiken porque nenhum dos outros grupos cedia fundos para o trabalho de cosplay dele (no manga vemo-lo a usar um fato pelo menos numa ocasião, mas nunca no anime – aqui ele só os faz para outras pessoas). Não só é um perito em corte, costura, medidas e materiais para fazer fatos que geralmente seriam impracticáveis na vida real, ele também se dedica seriamente a construir modelos e figuras – um dos episódios consiste quase na totalidade de aulas que ao longo de uma semana ele dá a outros membros do grupo sobre a construção de modelos de Gundam.
Já o Kugayama é muito mais contido nos talentos dele, pois desenha e já chegou a submeter o trabalho dele a revistas de amadores, mas não gosta que vejam o que desenha nem tem a iniciativa de fazer mais do que ilustrações isoladas. Gagueja frequentemente e é o mais pesado dos membros habituais.
Um membro que aparece poucas vezes é o Taniguchi, mas ninguém se importa – quando abre a boca é invariávelmente pra falar mal e fazer as pessoas sentirem-se pior, e não paga as quotas do clube. Acaba por passar mais tempo no clube de manga, do qual também é sócio, mas onde também não paga as quotas e é igualmente detestado. É, no entanto, dos membros mais veteranos do Genshiken – só é ultrapassado nesse aspecto pelo presidente, o primeiro e ainda activo, mas que não se sabe desde quando.
Talvez por o Genshiken ser predominantemente masculino, eventualmente junta-se ao grupo um elemento femenino, a Kanako Ohno, que preferiu o Genshiken aos outros grupos maiores porque nestes só gostavam de personagens jovens e convencionalmente atraentes, enquanto o gosto dela tem mais a ver com homens carecas de meia-idade; seja por uma questão de representar um outro hobby no Genshiken ou pra impedir que a história se centrasse numa festa da mangueira pouco colorida, ela é adepta practicante de cosplay, e não são raras as vezes em que tenta convencer a Saki a tentar fazer o mesmo. Um aspecto em que pouco se tocou no anime mas que é mais flagrante no manga é que ela é tão fã do yaoi como os outros membros são de doujinshis e jogos eróticos geralmente concebidos para o público masculino.
Feitas as apresentações, o que é que acontece numa série sobre fãs?
Bem, logo no primeiro episódio temos como intro parte de uma série vista pelos protagonistas, Kujibiki Unbalance (abreviado como “Kujian”), um anime tipo harem onde o “moe” é rei e senhor – a intro dessa série (que nesse episódio substitui a do próprio Genshiken) está muito bem conseguida como paródia ao género, mas também acaba por servir na história o propósito de, ao ser reconhecida a música da mesma pelo Sasahara à porta do clube quando o vai visitar pela primeira vez, de ter a noção que está em território peculiarmente familar apesar de estar a chegar a um sítio novo – e a certa altura serve também de referência visual aos membros do grupo ao ficarem a saber da história comum do Kousaka e Saki.
Ao longo da série o “Kujian” faz as vezes de série de culto do momento, sendo frequentemente tema de posters, figuras e doujinshis eróticas, sem falar dos próprios episódios – foram feitos três para serem mostrados dentro da série, e pelo menos no Japão cada um deles é incluído com uma das caixas de DVD da série; mais interessante promoção ainda foi ter sido distribuído um jogo de luta básico para Windows com personagens dessa série para quem comprasse toda a série em DVD, promoção improvável de ser vista fora da Ásia.
Embora seja mostrada uma série ficcional dentro desta série de ficção, o que é compreensível tendo em conta que já o manga continha bastante material sobre “Kujian” (que era também um manga nessa versão), deram-se ao trabalho no entanto de incluir sequências com 2 jogos verdadeiros, o Guilty Gear Isuka (no qual o Kousaka faz combos legitimamente impressionantes, e tema do primeiro cosplay da Ohno) e Puyo Puyo.
Outros episódios do Genshien cobrem actividades como uma visita do grupo a Akihabara em paralelo com uma saída da Saki pra ir comprar roupa, em que se mostra que algumas atitudes são mais parecidas do que seria de esperar, visitas ao Comifest (análogo na série do Comiket), conflitos com a direcção de estudantes (que não vê propósito na existência do Genshiken e está disposta a acabar com ele), e chega mesmo a haver um episódio que consiste na sua quase totalidade no facto do Madarame e da Saki estarem sozinhos na sala do clube, ela entretida a ler, e ele a tentar perceber o que fazer ou dizer nessas circunstâncias, por vezes vindo-lhe à cabeça conceitos mais próprios de certo tipo de jogos, que ele tem consciência que não são plausíveis mas que não parece conseguir evitar.
Pelo meio há cenas e subtilezas que para o melhor e pior parecem muito mais reais e terra-a-terra do que é habitual em qualquer outro anime – certos silêncios, hesitações e embaraços que noutras séries seriam tratados com uma mudança de cena ou outro tipo de interrupção conveniente aqui são tratados de forma crua e practicamente impiedosa (embora uma vez por outra hajam cenas mais inverossímeis), e é aqui que está o ponto forte da série animada – o timing neste tipo de cenas está practicamente perfeito, e seria impossível de simular no manga.
Destaque particular para a OP e ED, que reflectem facetas diferentes da série. A OP começa por mostrar os vários personagens isoladamente ao som de uma música moderadamente animada, relativamente entretidos dentro do possível (e aqui a letra ajuda ao espírito da coisa: “há algo em que sou o melhor do Japão, mas é uma pena que ninguém saiba disso”), até certo ponto em que a música ganha renovado fôlego – a partir desse momento practicamente todas as cenas mostram os personagens juntos de volta do que gostam a divertirem-se mais do que nas cenas anteriores em que estavam a solo, com a possível excepção de uma sequência breve em que a Ohno está a posar pra fotos em cosplay, e de um plano da Saki a olhar pela janela com um sorriso de aceitação compreensiva, já que não está virada para as mesmas coisas que os outros. A separar essas duas fases, uma breve mas bem conseguida cena em que a música se coordena com um combo no Guilty Gear.
Já a ED varia conforme os eventos do próprio episódio. A música tem um tom mais melancólico e nostálgico e é sempre a mesma, mas o que é mostrado varia ligeiramente – é sempre mostrado um plano da sala do Genshiken, e a “câmara” vai-se afastando de modo a mostrar mais detalhes com o passar dos segundos, alguns nem sempre visíveis a princípio, como alguns personagens cuja presença explica as atitudes de outros que sejam visíveis desde o início da mesma.
É de notar que no último episódio a ED no final mostra uma personagem que até ao momento ainda só apareceu no manga, e que mesmo assim já goza de alguma popularidade – as boas notícias é que parece que está prevista uma segunda serie de Genshiken em ela apareça e possamos continuar a disfrutar do bom trabalho que foi feito nesta série.
Mas com uma série como esta, mais do que simplesmente ver, somos convidados a (re)pensar a maneira como encaramos os nossos hobbies, a nós próprios e os outros que os partilham – isso só por si já pode ser um passo em frente.
Escrito por: Luis Coelho