Tsukishima Shizuku (Honna) é uma estudante de 14 anos muito aplicada que, ao contrário da generalidade dos colegas, passa a maior parte do tempo livre a ler, deslocando-se de casa para a escola, para a biblioteca e de volta a casa. Intrigada com o facto de muitos dos livros que lê terem sido requisitados previamente por Amasawa Seiji, decide tentar descobrir quem será a pessoa com quem partilha preferências de leitura. A sua amiga, Harada Yuko, está numa situação aflitiva pois recebe cartas de amor de um colega, mas está apaixonada por outro rapaz que mal repara nela. Um dia, ao levar o almoço ao pai, Shizuku encontra um gato no comboio que parece muito seguro do seu percurso. Como o felino sai na mesma estação, ela decide segui-lo, vindo a encontrar uma loja de antiguidades, gerida por um velhote simpático. O antiquário tem um neto que fabrica violinos na cave da loja e pretende viajar para Itália para estudar essa arte. Shizuku atravessa uma crise de identidade e pondera abandonar a escola e dedicar-se à escrita de romances.
Miyazaki Hayao e Takahata Isao são os nomes imediatamente associados às produções do estúdio Ghibli, sendo o primeiro quem tem assinado os títulos mais populares. Miyazaki declarou, em mais que uma ocasião, que iria deixar de realizar filmes e, em meados dos anos 90, o estúdio decidiu apostar no talento de Kondo Yoshifumi, um artista com créditos firmados, que tinha sido supervisor de animação em «Hotaru no Haka» [«Grave of the Fireflies»] (1988) e «Omohide Poro Poro» [«Only Yesterday»] (1991), de Takahata, e «Majo no Takkyubin» [«Kiki’s Delivery Service»] (1989), de Miyazaki. Infelizmente, «Mimi wo Sumaseba» seria a única obra dirigida por Kondo, que viria a falecer vítima de um aneurisma, em Janeiro de 1998, com 47 anos.
Há em «Whisper of the Heart» uma proximidade com o trabalho de Miyazaki, que decorre necessariamente dele ter produzido o filme, assinado o guião e criado os storyboards, a partir de uma manga original de Hiiragi Aoi. As personagens foram desenhadas por Kousaka Kitarou, previamente esboçadas por Kondo. [1] A sensibilidade e o investimento sério com que se abordam problemas de crianças e adolescentes são comuns aos filmes de Miyazaki — o mais próximo de «Mimi wo Sumaseba» será «Kiki’s Delivery Service» —, mas este prefere situá-los num cenário de fantasia.
Miyazaki está fortemente ligado ao processo criativo e a sua influência é incontornável, mas a abordagem aqui é mais realista, com uma separação bem definida entre a ficção e o dia-a-dia das personagens, bem assente na terra. A acção do filme como que se suspende para dar espaço a uma sequência de fantasia, que ilustra a história que Shizuku escreve.
Tal como outros filmes de Miyazaki com protagonistas muito jovens, como «Tonari no Totoro» [«My Neighbout Totoro»] (1988) e «Kiki’s Delivery Service», «Mimi wo Sumaseba» não emprega uma situação de conflito, única, como sustentáculo narrativo. É uma obra que assenta firmemente em problemas e indefinições no espírito de uma rapariga jovem, confrontada com a necessidade de, em tenra idade, tomar decisões que se lhe aferem como determinantes para a sua vida futura, algo que nos poderá parecer algo démodé, confrontando com os miúdos de 14, 15 anos dos nossos dias, preocupados com muita coisa, mas onde, na maioria dos casos, não entrará o futuro ou a tomada de responsabilidade pelas suas decisões ou actos. Com a subtileza que caracteriza o trabalho do Studio Ghibli, no que toca ao desenvolvimento dos textos, há exposição de princípios morais e conselhos para os jovens que os quiserem ouvir e absorver, sem um tom paternalista notório ou com desprezo pelo factor lúdico.
A qualidade da animação é a esperada das produções deste estúdio japonês, com uma concepção de personagens baseada num característico traço clássico, sem complexidades que prejudiquem o fluir da animação e sem perdas de tempo com show off. Os fundos são desenhados com rigor e com grande detalhe. A direcção é escorreita, não obstrutiva.
Uma vez mais, o meio não interfere com o contar de uma boa história e com o surpreendente realismo que se consegue extrair da “representação” de personagens animadas. A galeria é vasta e cuidadosamente definida. Shimizu vive com os pais e com a irmã mais velha, Shiho. É uma família típica, diríamos. Ainda que haja um tempo de ecrã reduzido para cada uma das personagens secundárias, consegue-se caracterizar muito bem cada um dos residentes daquela casa, de modo que um facto incidental, banal, como o anúncio de que Shiho vai morar sozinha — a procura da independência é um tema forte em Miyazaki — faz-nos sentir a importância da decisão, como se se tratasse de alguém que nos é próximo. Outras personagens que contribuem para a diversidade e densidade das relações humanas de «Mimi wo Sumaseba» são os amigos de Shimizu, Yuko e Sugimura (para além do seu próprio “interesse romântico”, como é natural) e a professora Kousaka.
Apesar da função (natural) dos pais de Shimizu, encontramos no antiquário a figura paternal central (a professora cumpre uma função narrativa similar), emitindo conselhos importantes para a heroína do filme. Procura-se assim definir dois círculos de onde os jovens podem esperar receber educação e cultura, para se tornarem adultos responsáveis: a família e a sociedade — no fundo, a geração anterior. O antiquário é uma figura romântica típica, com as suas histórias de outrora, sobre amor interrompido, vítima de circunstâncias sociais e históricas, fora do controle do casal, simbolizando um certo misticismo de um mundo exterior prenhe de possibilidades — a viagem a Itália é também reflexo deste conceito. O conjunto destes elementos sublinha a importância de uma formação multilateral, onde a família é o núcleo essencial, o ponto de partida. O respeito pelos seniores, com um relevo acrescido em sociedades com fortes influências confucionistas, é importante, mas Kodo, como Miyazaki, insiste em frisar que o mais importante é que as personagens possam tomar as suas próprias decisões e prepararem-se para assumir a responsabilidade por elas. Tudo isto, sem lamechice ou o isolamento de lições moralizadoras a preceder os créditos, sem quebra da fluidez e coerência narrativa.
Se muito do cinema que se faz hoje em dia tem actores de 20 e 30 e tal anos que se comportam eternamente como teenagers tolos, alguns dos filmes de animação Ghibli podem surpreender pela apresentação de crianças invulgarmente maduras e demasiado embrenhadas num futuro que deveria ainda demorar algum tempo até que lhes trouxesse preocupações sérias. No caso da obra de Kondo Yoshifumi, os diálogos finais assumem contornos particularmente contundentes. Fará sentido crianças de 14 anos falarem daquele modo uma com a outra? A verdade é que o espectador, embrenhado na narrativa, só reflecte sobre isso quando os créditos já rolam (e, tal como em outros filmes do estúdio, continuam a acontecer coisas mesmo até ao final). A opção é mais relevante pelo que representa, num nível simbólico que se sobrepõe a qualquer exigência por realismo [2].
[1] Parte da informação factual aqui referida está disponível no site Nausicaa.net, para onde se remete para outros desenvolvimentos sobre o trabalho de Miyazaki Hayao e do Studio Ghibli.
[2] Cfr. no site referido na nota anterior o FAQ sobre «Mimi wo Sumaseba».
Autor: Luís Canau (www.asia.cinedie.com)