De que se faz um clássico? De uma história sobre a culpa e a redenção. Sim, podem franzir o sobrolho à vontade, mas Monster é o primeiro clássico da animação japonesa a nascer no século XXI.
Com 74 episódios e dois prémios ARC (Anime-Reactor) arrecadados em 2004 – Melhor História e Melhor Thriller – ainda para mais em ano de Elfen Lied e Full Metal Alchemist, só para dizer dois, Monster é somente a melhor coisa que aconteceu ao anime desde os idos anos 80 e suas séries gigantes com fundo moral.
Se dissermos que a culpa ocupa apenas o primeiro episódio da série e a redenção os outros 73, não estaremos a exagerar. Tenma, um médico japonês prestigiado a trabalhar na Alemanha comete um erro ao salvar um “serial-killer” embrionário depois de, anteriormente, ter escolhido operar alguém mais importante em detrimento de um homem que havia chegado primeiro ao hospital. A escolha posterior em salvar uma criança, preterindo o presidente da Câmara local fá-lo cair em desgraça no amor, na profissão e em si mesmo (como se não estivesse tudo ligado). Numa Alemanha pós-queda do Muro de Berlim com as doenças típicas da pós-modernidade – assassínios em série, o poder das máfias e o recrudescimento do nacional-socialismo – são introduzidas várias histórias e pessoas num enredo disposto em camadas baseadas numa tríade de desvios psíquicos, actos de violência e pedaços da história contemporânea.
Com uma trama principal que envolve a perseguição incessante por Runge (uma das personagens mais interessantes da série e que lembra o detective Javert dos Miseráveis de Victor Hugo), detective do BKA que também vive obcecado em encontrar e prender o Jean Valjean de Monster, o médico Tenma. A procura de Runge pela confirmação de que Tenma é o monstro por trás dos actos criminosos torna-o uma personagem bastante irritante, no entanto, no episódio 40 é introduzido outra pessoa na história que vem compensar o desequilíbrio provocado pelas injustiças constantes da política alemã. Essa personagem é Grimmer, um ex-espião na Alemanha de Leste que procura agora provar os abusos sexuais a menores em orfanatos antes da queda do Muro.
Mas o melhor da série é de longe o triângulo disposto entre o Dr. Tenma e os irmãos gémeos e, depois, o desdobramento das histórias (e das personalidades) que é feito a partir destes dois últimos numa constante descoberta da história que sofre vários atropelos durante os quais nós, deste lado, nos sentimos manipulados pelo vilão Johan Libert. Destes três personagens, desenvolve-se uma das melhores histórias em anime que abarca muito daquilo que pode ter acontecido na República Democrática Alemã e as consequências de aproveitamentos políticos a partir de crianças abandonadas. As questões da personalidade são, apesar de todos os truques da storyboard para preencher (mas nunca encher) 74 episódios, as mais interessantes, principalmente quando chegamos à secção República Checa, mansão das Rosas e experiências de apuramento da raça, tendo como pano de fundo a família dos gémeos. Não esquecer episódios em que pomos em causa qual dos gémeos provoca o mal emergente e outros em que questionamos se o mal não estará semeado já em todos nós e o “monstro” é apenas despertado por um “visionário”.
E depois há a animação, da Madhouse, pois claro, que se pode dizer ocidentalizada. Faz lembrar uma Família Von Trapp, mas em versão mistério, thriller e sem sol. Além disso, a animação começa a melhorar a partir do episódio 20, havendo uma maior fluidez nos movimentos e nas cores e os traços das caras não aparecem tão carregados. Não é um defeito importante, é uma evolução que acontece em muitas séries e ainda bem, aliás é do conhecimento geral (ou deveria ser) que só uma boa animação consegue criar personagens tão feias e grotescas (um pouco à maneira Satoshi Kon) como acontece em Monster.
O toque de cinema noir também paira em Monster, não só pela perseguição acéfala do Runge, mas também nos subenrendos como os négócios das máfias alemãs, os grupos neonazis e as cenas de acção. Em certos aspectos faz lembrar filmes como, e dando apenas um exemplo à toa, o Falcão de Malta em que a procura da justiça é o ponto de fuga de todos os mini-enredos decorridos à volta do grande crime. Há outras referências ao longo do anime como o expressionismo alemão nas figuras grotescas como os assassinos, as prostitutas (a falsa Margot Langer é um exemplo disso) e os bobos, neste caso e como tem de haver sempre uma figura ridícula no meio daquilo tudo, o papel calha a um ladrão de pacotilha que, felizmente, desaparece por volta do episódio 30 por se tornar altamente desnecessário e com gags aborrecidos de tão repetitivos. Felizmente, Monster não se perde muito em personagens insignificantes e aposta nas que são fortes: Eva, Tenma, Anna e Johan. Uma nota especial para Eva, uma das personagens mais brilhantes e menos lineares e que pouco surge em séries de anime. Eva não é a típica mulher histriónica e acéfala, ela evolui ao longo dos episódios e nós odiamo-la, amamo-la, tememos por ela e desejamos protegê-la. A seyuu também ajuda e é bem capaz de ser a melhor de todas as personagens.
A música do Monstro divide-se em duas categorias: as dos genéricos e as dos sons situacionais. Ora, as primeiras, por sua vez, dividem-se também em duas: uma má e duas boas. As músicas do genérico inicial estão muito perto do péssimo: um pós-rock neogótico e gregoriano não poderia nunca, mas mesmo nunca, dar bom resultado. Percebe-se a tentativa de spookiness, mas admitam, mesmo para fãs da série, a música é um fracasso. Em compensação os dois endings são fenomenais. Até ao episódio 33, é David Sylvian com a For the Love of Life, mas é a partir da 34 até ao final que a Make it Home de um tal de Fujiko Heming acerta em cheio no ambiente da série, sobretudo na adequação dos tons musicais aos desenhos do livro infantil dos gémeos.
Os sons de situação são a segunda grande parte musical de Monster, série que gere tão bem os silêncios como as músicas-para-anunciar-que-algo-de mal/bom/excelente-se-vai-passar em determinadas cenas. Sobretudo em situações de maior suspense não se encontra em Monster a típica música de filme de terror cheia de suspiros e pianadas trágicas, há o silêncio que é o mais assustador de tudo, é um silêncio que é introspectivo, faz-nos olhar para dentro porque o maior terror não é o que está no exterior. Nesse sentido, a música (e a sua ausência) é a parte em que há maior manipulação dos sentidos (a par, claro, com a animação e os seus jogos de luzes feitos com a escuridão e a noite, dois dos elementos mais difíceis de animar).
Não há defeitos em Monster? Há. Há um defeito que o impede de ser a melhor série de sempre. Em 74 episódios, houve tempo para humanizar as personagens, quer dizer, não leiam isto de forma errada. Elas são altamente credíveis, o seu desenvolvimento ao longo da série é feito de forma natural com as nuances específicas de uma boa stroyboard que visa uma boa caracterização.
Mas, mas não há amor em Monster. Aguardar mais de 70 episódios pelo surgimento de laços entre as duas personagens principais e isso não suceder senão de forma tão velada que pode até ser apenas fruto da imaginação do espectador, torna a série vazia de coração. Há amizade, há solidariedade, há justiça, sobretudo justiça, mas falta amor. É uma pena, mas se calhar é por isso que amamos a série, mas não nos apaixonamos por ela. Ela é o homem da nossa vida, mas pode não ser a paixão da nossa vida.
Escrito por: Margarida Ponte