O crescimento de Tóquio durante os anos 60 originou uma explosão urbanística nos subúrbios; montanhas foram aplanadas e florestas abatidas. Os tanuki, uma espécie de guaxinins, vêem-se ameaçados pelo desenvolvimento dos humanos: a área habitável reduz-se, bem como os recursos alimentares. A falta de comida conduz a guerras internas, mas a sabedoria dos anciões canaliza a energia e a frustração de todos os tanuki contra o inimigo comum: o Homem.(1)
Dirigido e escrito por Takahata Isao, a partir de um conceito de Miyazaki Hayao, «Pom Poko» é um dos trabalhos do Studio Ghibli que mais assenta em questões ambientais e no desenvolvimento civilizacional sustentado. A temática tem servido de pano de fundo a várias histórias, assinadas por Takahata e Miyazaki, desde «Nausicäa of the Valley of the Wind» (1984) a «Princesa Mononoke» (1997).
Se o contraste entre a harmonia da vida no campo e o caos da cidade marca presença em muitas destas obras, como «Tonari no Totoro» (1988) ou «Only Yesterday» (1991), os efeitos da actuação do homem no equilíbrio natural estão patentes sobretudo em «Nausicäa», «Mononoke» e neste «Pom Poko» — títulos onde se geram conflitos bélicos derivados do confronto entre homem e natureza ou de diversos grupos em luta por recursos limitados.(2)
«Pom Poko» difere das outras obras citadas por não ter protagonistas humanos, ainda que os tanuki assumam também essa forma. Na verdade, e em coerência com um aspecto central da narrativa — a metamorfose ao serviço da luta contra o progresso —, os tanuki assumem três aspectos (independentemente da transformação noutros seres ou objectos), consoante a sua disposição ou a acção do filme.
A forma bípede, que assumem normalmente longe de olhares humanos, é a de típicos animais antropomorfizados em animação infanto-juvenil. Sempre que há interacção com os inimigos, surgem numa representação realista, havendo ainda lugar para um look mais cartoonesco, baseado na obra de um mangaka admirado por Miyazaki, Sugiura Shigeru.
Esta transmutação cíclica das personagens centrais não é frequente na animação ocidental, onde se dá preferência a heróis e vilões bem definidos graficamente, facilmente identificáveis. A diferença maior entre um filme de grande público como este e um filme de grande público europeu ou americano prende-se com as concessões com uma audiência que se supõe muito delimitada, que costumam resultar numa exagerada simplificação das personagens e da narrativa.(3)
O Studio Ghibli, como já se tem referido, e como será notório para qualquer observador minimamente atento, não produz obras de “arte e ensaio”, excepto para quem integre em tal conceito qualquer filme que não seja falado em inglês. O design antropomorfizado dos tanuki é empregue durante a maior parte do filme e é o requerido para melhor atingir o público.
As duas outras “encarnações” são possíveis devido à complexidade do texto. O filme não cria um passado alternativo, mas assenta em factos (o desenvolvimento urbano dos subúrbios de Tóquio). A mera necessidade de contar uma historinha de aventuras com bichos reduziria «Pom Poko» aos 70 minutos “da praxe”. A complexidade, o tom épico — reforçado por um narrador que situa a acção no tempo, referindo-se a anos da “Era Pom Poko” (4) — , mas também a necessidade de permitir momentos ligeiros, de puro humor (os tanuki gostam de se divertir), dão azo a um filme de duas horas, que não se quer inócuo; na guerra, não deixam de haver baixas, de um lado ou de outro.
Outro factor que pode levar alguns pais a reflectir se o filme é adequado ou não para as suas crianças mais pequenas é o modo “ostensivo” como é desenhada a anatomia das criaturas. Não estamos exactamente habituados a ver, num filme familiar, bonecos animados com testículos dependurados. E, menos ainda, à sua utilização relevante num contexto da guerra, demonstrando enorme flexibilidade durante as transmutações. Surpreendentemente, o filme foi editado pela Disney (classificado PG). O facto de ser na versão integral já não nos pode surpreender, já que tal é, felizmente, forçado pelo acordo de distribuição.
Nunca é demais reforçar que a excelência e a maturidade dos filmes Ghibli, sejam mais ou menos adequados para crianças, torna-os mais apetecíveis para o consumo próprio de adultos cinéfilos do que para o entretenimento dos seus rebentos, não invalidando que muitos destes filmes consigam, de facto, maravilhar tanto crianças como adultos.
(1) Por uma questão de simplificação na tradução, os animais são referidos normalmente por guaxinins/racoons. O nome da espécie é nyctereutes procyonoides viverrinus.
(2) Estes temas foram já largamente abordados em outros comentários à obra Ghibli, para onde se remete para outros desenvolvimentos.
(3) O facto de os cineastas e os japoneses em geral levarem a animação muito a sério reflecte-se na candidatura de «Pom Poko» ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, pelo Japão, nos Prémios da Academia de 1995. Foi também o nº1 nas bilheteiras locais em 1994.
(4) No Japão, além do calendário gregoriano, usa-se ainda, paralelamente, uma contagem de anos de acordo com eras delimitadas pelo reinado dos imperadores. A era actual, Heisei — referida no título original do filme —, começou em 1989 (2005 é o ano Heisei 17), seguindo-se à Era Showa (1926-1989). A Era Showa corresponde ao tempo de Hirohito e a Era Heisei ao do actual imperador, Akihito.
Eecrito por: Luís Canau (www.asia.cinedie.com)