Relativamente desconhecido do grande público, Porco Rosso (1992) é possivelmente a obra prima de Hayao Miyazaki, contradiando um pouco aqueles que afirmam sem hesitação que A Viagem de Chihiro (Spirited Away) é o momento alto dos Estúdios Ghibli. Afirmo isto porque, embora seja um fan de sempre do Studio Ghibli, parece-me que nenhuma das obras posteriores, que são realmente magníficas, consegue captar a magia humana, o idealismo e a ‘captura’ de fontes imagéticas tão interessantes como o filme onde herói dos ares Marco Rosso, misteriosamente transformado em porco, brilha como um dos últimos heróis românticos.
Talvez muito devido à grande exposição comercial de Miyazaki, sobretudo devido aos acordos com a Disney para a distribuição mundial dos seus filmes, o realizador nunca mais conseguiu captura o idealismo ‘adulto’ que Porco Rosso contém. Não estou com isso a afirmar que foram feitas concessões na forma como Miyazaki lida com o material que usa para criar as suas fábulas que já fazem parte da cultura pop actual, mas de certo que existe de certo interesse de abranger o cada vez maior número de espectadores nos seus filmes, que têm vido a tornar-se cada vez mais comerciais (isto num sentido neutro, longe do sentido prejurativo que esta palavra tem por vezes tomado).
De facto Porco Rosso não é um filme para crianças, mas um brilhante exercício de reciclagem imagética que relembra ou mostra pela primeira vez (conforme os casos) ao adultos o explendor heróico vivido pela ‘cavalaria aérea’ da Primeira Grande Guerra, ferido de morte (esse explendor entenda-se) na lama das trincheiras e completamente desaparecido com o aparecimento (ou consolidar) dos fascísmos europeus dos anos 30 do século passado.
Passado no sul do Mar Adriático dos anos 30 onde, numa ilha deserta, se refugia do mundo exterior um virtuoso piloto transformado em boémio porco que combate (a troco de dinheiro) piratas do ar, Porco Rosso revela na sua aparente fábula partes da Europa que não quiseram ‘avançar’ com os tempos do fascísmo e onde as questões de honra ainda marcavam (embora por pouco tempo, pois o tempo avança se consideração pelos idealistas) a vida do quotidiano. Claramente este cavaleirismo, que Marco Rosso representa, teria já desaparecido nessa altura, e o piloto, como que se recusando a enfrentar isso, nega-se a ser parte de uma humanidade que toma tal desaparecimento como garantido, usando o motto (irónico) “antes ser um porco que um fascista”.
Este filme é um magnífico relato heróico que aproveita muitas referências históricas e cinematográficas italianas (a vaga imigração italiana para a terra prometida que seriam os EUA, os nomes das personagens que representam actores e realizadores de uma das cinematografias mais ricas da Europa, o aparecimento do fascísmo italiano, etc, etc…) para contar uma séria fábula de resistência e individualismo, onde cabe sempre (e de forma inequívoca) os valores de camaradagem próprios deste ‘Sul’, que resiste a um mundo uniformizado e sinistro.
Porco Rosso decerto que será, caso o Tempo (o tal sem consideração pelos idealismos) lhe faça justiça, considerado dentro de alguns anos uma das obras de animação mais significativas para a história do Cinema do Século XX. Resta apenas esperar, recomendandoeste filme àqueles para quem as referências dessa Europa em ‘vias de extinção’ ainda fazem sentido.
Apenas deixo a nota para se evitar a edição americana em inglês (da Disney, pois claro), para aqueles que querem ver um dos maiores tributos à Liberdade (e já agora à Itália pré-fascista) de forma ‘limpa’ e sem equívocos de linguagem (aqui vale a pena ouvir japonês e ler as legendas, acreditem) ou filtragem de conteúdos considerados ‘politicamente incorrectos’ para o gigante da animação.
Escrito por: Nuno Barradas