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Rurouni Kenshin Tsuiokuhen

 

Boas lembranças aquelas em que durante a semana o Batatoon na TVI era religiosamente visto. Sem anúncios, sem aparato, surgiu a série que te obrigava a ficar colado ao televisor era a história do Samurai X, um espadachim que queria defender todos, mas sem matar ninguém. Por isso usava uma espada com lâmina invertida chamada de “Sakabato” com a qual “batia” nos adversários em vez de os cortar. Sim… essa foi uma das séries anime da minha vida… e acredito que de muitos outros por esse mundo. É só pesquisar na Internet a quantidade de “sites” elaborados por fãs do lendário Kenshin Himura. Esta série foi um dos pontos marcantes do anime, especialmente importante na internacionalização do fenómeno e cuja história atingiu patamares de mito.

Acredito que para muitos, como para mim, Samurai X foi a série que os fez apaixonar pelo mundo da animação japonesa.

Para quem seguiu a série, certamente lembram-se que Kenshin era provavelmente o melhor e mais temido samurai do Japão. Mas… como seria possível se Kenshin não matava os seus adversários? Pois… sempre nos dizem que Kenshin tinha um passado negro, sendo considerado durante o Bakumatsu (período de guerras civis no Japão a meio do século XIX que marca o fim do poder dos Shogun, espécie de senhores feudais, em prole do imperador), o assassino mais terrível e eficaz do país do sol nascente. Sim eles dizem isso na série, mas vendo o Kenshin da série é quase inacreditável pensar isso. Seja pela sua comicidade quase apatetada, seja pela sua vontade férrea em não matar.

Então para mostrar aos fãs em 1999 é lançada uma OVA, apelidada de Tsuiokuhen (lembranças) que conta a história de Kenshin antes dos acontecimentos da série.

O que fazia de Kenshin o maior samurai japonês? Porque tem ele a convicção inabalável de não matar? Porque tem ele aquele espírito de missão? Porque é ele renitente em relação a Kaoro (o interesse amoroso da série)? Afinal… como ganhou ele a cicatriz em forma de cruz na face?

Sim… todas estas dúvidas dos fãs são esclarecidas em Tsuiokuhen. E de que forma! E de que forma meus senhores!

Dividida em quatro episódios, “O homem da espada cortante”, “O gato perdido”, “A noite anterior na casa da montanha” e “Cicatriz em forma de cruz” (tradução minha), a OVA lançada em 1999 conta a história de Kenshin, desde criança até se tornar o mais temido assassino samurai. Não necessariamente de uma forma cronológica, mas tudo o que queríamos saber está lá.

Para quem viu a série prepare-se, o Kenshin alegre, cómico e meio pateta da série original, o tom bem disposto… Simplesmente não existe. Em Tsuiokuhen tudo é sombrio, sério, dramático, realista. Estamos a ver um anime? Isso nem nos passa pela cabeça.

A premissa da história é simples, uma criança chamada Shinta, cujos pais morreram de cólera segue numa caravana que é atacada por bandidos. Todos são mortos… no último instante Seijuro Hiko, um mestre samurai, aparece e mata todos os bandidos. O único que se salva é a criança. Seijuro prossegue o seu caminho. Alguns dias depois ao passar no mesmo local, vê que Shinta sepultou todos. Esse acto sensibiliza o mestre samurai que resolve cuidar de Shinta. Mas… esse é um nome que não se coaduna com um espadachim. Seijuro rebaptiza a criança, a partir desse momento chamar-se-á Kenshin, Ken que significa espada, Shin que signfica (dado que não sei japonês e encontrei duas traduções), morte ou espírito.

Assim começa a nascer o lendário Kenshin Himura, ou Hittokiri (assassino) Battousai (esquartejador), que ainda jovem se une a um dos grupos partidários do imperador, com o objectivo de criar um novo mundo, mais pacífico.

Enquanto se estabelece como o assassino mais habilidoso do país do sol-nascente, encontra no seu caminho Tomoe Yukishiro, que o vê a assassinar uma pessoa. Kenshin pensa em matar Tomoe mas acaba por acolhê-la na pensão onde estão os homens do seu grupo.

E é deste relacionamento que surge a força motriz de todo o anime. Kenshin, o assassino, Tomoe a noiva de um assassinado por Kenshin. Ela procura vingança, mas…

Sem perder o imenso substrato histórico que envolve a série, é entre as duas personagens que tudo se desenrola, os momentos entre Kenshin e Tomoe de uma delicadeza pungente, o percurso psicológico de cada um é notavelmente conseguido. Vamos descobrindo, pouco a pouco, o que move aquele jovem e aquela etérea Tomoe que surge como neve imaculada, onde o cheiro do seu perfume lembra as flores cujo odor se acentua sob a chuva… mesmo que seja uma chuva de sangue.

Tal é a força e o conteúdo trágico que envolve as duas personagens principais, que tudo o resto parece passar-nos ao lado. As outras personagens fazem parte de um mundo cruel e complexo, sendo elas também complexas embora apenas de forma aparente. Não interessa ao espectador a profundidade emocional dos outros. Não pode haver distracções daquilo que importa: a dinâmica entre Tomoe e Kenshin.

Ficamos a pensar sobre quem é na realidade este jovem Kenshin, um assassino cruel? Um idealista utópico? Provavelmente ambos. Tomoe é uma cruel vingadora que controla as suas emoções? Aparentemente. Ela é na realidade alguém corroído pela dor.

Imaginem a seguinte situação… O vosso noivo/a é assassinado. Vocês apaixonam-se pelo assassino. Complicado, não? É exactamente esse o dilema, a dor, a questão que por fim atormenta Tomoe.

Vejam a minha situação… como criticar um anime que tu achas perfeito. Sim perfeito, em tudo. Na paleta de emoções que ele te transmite, desde de momentos de pura brutalidade a momentos de pura delicadeza romântica. Perfeito na animação, no desenho. Perfeito numa banda sonora que se adequa a um tom melancólico, quase monocórdico de Kenshin que nos transmite o seu controlo emocional sobre-humano. Perfeito na construção de personagens que quase nos podem tocar de tão verosímeis que são.

Querem voos e técnicas com poses estranhas? Aqui só temos a realidade brutal, rápida e assassina.

E fim… trágico como a vida de ambos os personagens. Só assim poderia ser, nada poderia ser diferente, tudo se conjuga como num plano perfeito onde um mestre atou todas as linhas soltas e as teceu numa trama sem escapatória possível.

Quando puderem assistir a este anime, sim porque não vão querer perder essa oportunidade, vão encontrar algo que está a um diferente nível, algo que só alguns iluminados podem construir, desenhar, imaginar, inventar. Ao comum dos mortais pode gerar inveja… só nos resta acompanhar a viagem e ficamos a pensar… será isto um anime? Não interessa, qualquer ser humano que se interesse por uma boa história, pela vida em geral, certamente irá amar este filme.

Mesmo sendo trágico quem não gostaria de ser Kenshin ou Tomoe?!

(A OVA “Tsuiokuhen” (lembranças) de Rurouni Kenshin foi produzida pelo “Studio Deen” e realizada por Kazuhiro Furuhashi. O lançamento ocorreu em 1999).

 

Autor: Ricardo Mendes

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