Escuro. Murmúrios abafados numa chusma nervosa de homens, armaduras, e armas. Lá pelo meio, avança o soldado, que vem mais empurrado pelos companheiros no medo do que pelo seu próprio pé e vontade. Lentamente, isola-se do pelotão uns poucos passos à frente e fica só, apenas envolvido pelo pavor. Pavor que não dura muito: antes de perder os sentidos, tem tempo para sentir um estrondo ensurdecedor que lhe estilhaça ossos e carne, e o projecta metros pelo ar numa patética amálgama humana.
Este seria o ponto de vista de um soldado romano, típico e quase literal carne-para-canhão numa qualquer história do simpático gaulês de asas na cabeça, e a minha tentativa algo oportunista de introduzir o tema do vilão. Como protagonista.
Convém agora dar uma vista de olhos por algumas noções de literatura e tipos de personagens. Por protagonista, entenda-se o personagem principal; antagonista, aquele que se opõe às acções do principal. Temos também o vilão, cujas acções são reprováveis, e o tipo bonzinho (termo técnico!). Há o herói, que age de acordo com valores comummente aceites como positivos; e o anti-herói, que age contrariamente a estes valores. Normalmente, o tipo bonzinho é o protagonista. O vilão, o antagonista. No entanto, se o foco da história está no vilão, o tipo bonzinho vira antagonista, sem, no entanto, deixar de ser herói. E o vilão passa a protagonista mas continua o anti-herói.
Mesmo em miúdos, ainda que tenhamos lido histórias em que os dois lados surgem (naquele “enquanto isso…” de intervalo ao que o herói está a fazer) em que nos é mostrado quão maquiavélicos são os planos que o vilão prepara, não é de todo habitual haver uma ênfase sobre o vilão, muito menos torná-lo na personagem principal. Ou, muito, muito menos ainda, procurar criar no leitor uma empatia para com os motivos do malfeitor. Ou a “sympathy for the devil”, como cantada pelos Stones.
Um ponto de vista que se prolonga na nossa vida, enquanto espectadores: separar o bem do mal, o errado do certo, num preto e branco implacável. E se de alguma maneira se justifica que, em pequenos, até por uma questão de utilitarismo moral, as coisas surjam assim, já será até algo embaraçoso e limitado continuarmos com esta atitude à medida que crescemos.
Podemos aqui puxar pela bandeira do manga: é sabido que a linha bem e mal no típico manga é normalmente bem mais pastosa. Que o personagem que antes era o supra-sumo da malvadez se torne aliado ou “side-quick” contrariado do Songoku, perdão, do personagem principal.
Mas depois, temos o caso que ainda baralha mais gente: a tal situação do vilão enquanto personagem principal. Em romance, é o caso de livros como “O Perfume”; em TV, com a série “Dexter”; em manga, é caso paradigmático Death Note.
Resumidamente, Death Note centra-se em Light (Raito) Yagami, um rapaz que, por acidente, encontra um caderno. Inscrita na capa deste, junto com uma quantidade de outras regras, está a frase “O humano cujo nome for escrito nesta caderno irá morrer”. Rapidamente Raito é confrontado com evidências que o levam a ultrapassar a desconfiança inicial, e resolve usar o caderno como ferramenta para erradicar o crime, para gáudio do original dono do caderno, o deus da morte Ryuk. Raito é de tal maneira eficiente que cedo a Polícia Internacional estranha o súbido aumento de mortes junto da comunidade criminosa e recorre aos serviços de L, tido como um dos melhores detectives mundiais, para investigar.
Ter o protagonista como vilão origina resultados interessantes para quem analiza a reacção do leitor. Há o leitor que põe terminantemente a história de lado, porque lhe é impossível ter afinidades com um conto onde o lado negro é quase exaltado; aquele que insiste em procurar o lado “bom” da história, e afeiçoa-se aos personagens que lutam contra o principal; aqueles que se recostam como meros espectadores, em se põem a ver a marcha passar, sem tomar lados; ou, talvez mais inquietante, aqueles que vêem no personagem principal um espelho das suas pulsões negativas, ou ideais ambíguos, e o apoiam. Em Death Note, temos os seguidores de L; os neutros que observam com uma satisfação algo sádica; e os seguidores de Kira/Light. Não raras vezes, os neutros acabam por torcer pelo anti-herói, mais não seja porque apimenta a história.
Sobre a projecção que o leitor faz de si mesmo no personagem, Stan Lee, escritor para a Marvel, comenta a apetência dos fãs pelos super-heróis que cria, como fruto da frustração que qualquer um já sentiu enquanto vitima. Quantos não terão sonhado com, depois de algum ladrão o ter roubado na rua, poder voar para onde o sacana está e poder aplicar-lhe dois murros na cara? O “ai sei eu pudesse…” Mas não pode. E ler os comics é uma maneira de dar um escape a essa fantasia.
Os que tomam Light como modelo operam mais ou menos pela mesma motivação. Foram, ou vivem sob o ameaça de serem vitimizados. Sentirão falta de um poder superior e implacável que erradique estas ameaças sem grandes ondas e, ao mesmo tempo, não confiam no poder instituído de polícias, tribunais e afins; apoiam e sentem empatia pela escolha que Light fez no que respeita ao uso da Death Note como ferramenta para acabar com o crime – esquecendo a possibilidade de que alguns dos acusados pelos media possam ser na realidade inocentes – e torcem para que Light consiga ultrapassar as dificuldades impostas pela investigação policial, nem que para isso tenha de matar alguns investigadores pelo meio… A meu ver, é uma fantasia que terá passado pela cabeça de todos nós: poder obliterar uma ameaça ou injustiça da nossa vida, e quem sabe até poupar dissabores a outros. E só com papel e caneta, ainda por cima! É o nosso lado de milícia popular, ou megera vingativa. Mas tais fantasias não deixam de nos deixar um certo amargo de boca.
E aqui está o problema, e simultaneamente, o SPOILER: calculo que estas incursões pelos nossos lados negros nem sempre deixem o próprio autor da história confortável, e o caminho do protagonista-vilão não raras vezes é descendente. É quase como se houvesse uma necessidade de voltar à segurança do certo-errado infantil. Der lá por onde der, César tem de acabar com o Coliseu em ruínas, e Light tem de descer de jovem ambicioso com idealismos perigosos a verme ridículo a implorar pela vida. Seguindo o velho adágio de o poder corrompe, temos no inicio do manga Light a debater-se, angustiado, com os problemas morais que tal poder levanta. Mas uma vez que usa o caderno, racionaliza o seu uso e coloca-se num patamar superior, a partir daí o corte é total, e o que temos à nossa frente é o tipo de pessoa que o Light original reprovaria totalmente. É o irromper do anti-herói. Todo e qualquer ponto positivo que Light teria é deturpado: os seus supostos altos padrões morais são deitados por terra no momento em que tem a oportunidade de matar o opositor L durante a primeira transmissão televisiva; a sua inteligência é apenas usada num recambolesco jogo de gato-e-rato; a sedução transformada em manipulação; a ambição transformada em arrogância estúpida que acaba por derruba-lo. Aqui, é interessante ver como os fãs de Light procuram justificar esta mudança, seguindo muita da racionalização que Light faz inicialmente: é óbvio que tem de matar L, pois este impede o surgimento de um mundo justo; é óbvio que não há nada de errado em usar Misa, uma vez que ela própria não está livre de culpa… E a ideia de que os fins justificam os meios começa a soar decididamente torpe.
Somos lembrados do ponto a que Light se alterou, quando vemos a personagem de quando da sua perda de memória, desaprovar totalmente as sugestões de L no que toca a usar pessoas e sentimentos para apanhar Kira, reacção que espanta o próprio L. Perante alguns dos pensamentos e atitudes de L, é até normal duvidar se existiram realmente heróis em Death Note: se os há, um deles será Light desmemoriado. E se calhar, durante aqueles curtos segundos no helicóptero, Light-bonzinho tem a curta consciência de quem é, do que fez, em que se tornou, e até que ponto está perdido. E o grito de pânico que solta nada mais é do que a consciência de tudo isto a esmagá-lo e calá-lo para sempre. Por segundos, é o herói trágico.
Neste sentido, personagens como estas acabam por ter a dupla função de libertar as nossas pulsões negativas, e, ao mesmo tempo, “viver” as consequências por nós. De nos pôr na posição de, a uma distância segura, confrontarmos os nossos próprios fantasmas.
Mas porque é que têm sempre de perder no fim?
Autor: Celia Kage