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Chinmoku

Em 1549, seis anos após o primeiro contacto dos portugueses em 1543 com os japoneses, Francisco Xavier chegou pela primeira vez ao Japão. Numa altura em que a igreja católica se tentava reinventar espalhando a fé por todos os cantos do mundo, Francisco Xavier teve um papel vital na introdução desta religião no Japão, onde em trinta anos e com a ajuda dos seus dos sucessores no Japão, chegou a um número de trezentos mil crentes. No entanto, desagradados com a crescente influência da religião católica no seu território, o shogunato Tokugawa decidiu começar a tomar medidas para controlar o crescimento da influência da religião católica e dos jesuítas que a propagavam, tendo estas medidas chegado à proibição total da religião em 1639, após a revolta de Shimabara, cujos muitos dos participantes eram cristãos japoneses. Começando uma autêntica perseguição aos crentes da religião católica no Japão, é neste momento de grande repressão que se situa a história da obra clássica de Shusako Endo, Chinmoku (沈黙, lit. O Silêncio).

Publicada em 1966, a obra de Shusako Endo viria a ser adaptada em 1971 ao cinema por Masahiro Shinoda, com um guião onde Shusako Endo foi membro participante da escrita do mesmo. No filme, tal como no livro, o personagem principal é o padre jesuíta Sebastião Rodrigues, que chega ao Japão acompanhado por um outro padre jesuíta, Francisco Garrpe, tendo ambos o objectivo de descobrir o que realmente se passou com o seu colega e mentor Cristovão Ferreira, acusado de ter apostatado e renunciado a Igreja durante a sua longa estadia no Japão. Colocado num local onde os crentes da sua fé são perseguidos, Sebastião Rodrigues na sua demanda para encontrar respostas sobre o paradeiro do padre Ferreira, irá ver a sua fé a ser testada variadas vezes ao longo do filme, numa obra que explora a relação entre o humano e o divino, além do papel e importância que damos às organizações que tutelam a religião no nosso mundo.

Esta primeira adaptação a filme do obra literária de Shusako Endo é bastante fiel ao livro, começando a adaptação cinematográfica no momento em que Rodrigues e Garrpe chegam ao Japão. Não possuindo o filme um narrador ao longo da jornada de Sebastião Rodrigues, o conflito interno sentido por este é-nos mostrado através da fotografia do filme e dos variados planos que se focam nas expressões faciais, que transmitem de forma eficaz a angústia deste. A fotografia é um dos maiores pontos de destaque do filme, havendo grande atenção ao pormenor e as expressões dos personagens nos momentos de diálogo mais intenso, mas também dando o destaque devido aos fantásticos cenários e à beleza natural de alguns dos locais por onde os personagens passam durante o filme.

Os personagens do filme vão variando entre a utilização do inglês e o japonês. Se por um lado é excelente ver uma adaptação da obra onde se fala a língua local, por outro é sempre um bocado estranho para um português ver personagens oriundos do seus país a falar inglês em vez da sua língua materna. No entanto, este não é um motivo para descartar o filme e os seus actores, que fazem um excelente trabalho. No papel de Sebastião Rodrigues temos David Lampson, um actor praticamente desconhecido que teve neste papel o maior destaque da sua carreira. Lampson retrata bem o personagem de Rodrigues, embora na minha opinião exagere um bocado na interpretação em alguns dos momentos no filme, no entanto tem um retrato fiel do personagem do livro, evidenciando também alguma da arrogância que este demonstra ao longo da obra.

No entanto, o papel a quem dou mais destaque é o de Mako Iwamatsu, no papel do fraco e de certa forma desprezível Kichijiro. Mako Iwamatsu retrata de forma excelente a fraqueza, angústia e mesquinhez que Kichijiro demonstra no livro, no papel que na minha opinião merece mais destaque no filme. Noutros papéis, Eiji Okada como Inoue e Rokkô Toura como o “intérprete”, estão também muito fiéis aos personagens do livro, já Don Kenny, como Garrpe, não tem grande destaque nesta adaptação cinematográfica da obra. O papel mais “estranho” do filme vai para o actor que escolheram para o papel de Cristovão Ferreira, Tetsura Tamba, um actor japonês que se faz passar por português, num papel que nos momentos iniciais me distraiu um bocado da história do filme devido ao disfarce meio bizarro escolhido para a caracterização deste personagem.

Chinmoku é uma boa adaptação cinematográfica da obra de Shusako Endo, que compensa a falta de narrador com uma fotografia excelente que ajuda a transmitir de forma competente os conflitos internos sentidos pela maior parte dos personagens. É um filme intenso, cujas cenas de tortura são um pouco fortes para os espectadores mais sensíveis, mas que no entanto ajudam a credibilizar a mensagem que o filme e a obra original de Endo querem passar.

Com a nova adaptação realizada por Martin Scorcese a chegar aos cinemas, este é um filme que vale sempre a pena ver, nem que seja para servir de ponto de comparação entre uma produção japonesa e um grande filme de Hollywood sobre a mesma obra. Com a sua mensagem forte, Chinmoku é um filme que vale a pena ver e que provavelmente nos fará repensar a nossa própria relação com o divino e a religião, no entanto, aconselho toda a gente a ler primeiro o excelente livro de Shusako Endo antes da visualização de qualquer das adaptações cinematográficas da sua obra.

Escrito por: Nuno Rocha

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