Regresso com um artigo de Cinema, desta vez um resumo de um trabalho realizado para uma das minhas cadeiras de Cinema. O objectivo deste artigo é dar a conhecer ao leitor um pouco mais dos processos que nos fazem viver o Cinema de forma tão intensa ao mesmo tempo que tentará ajuda o espectador dos filmes de Takashi Miike a compreender um pouco mais sobre o seu trabalho. Espero que gostem.
Plantinga e as Emoções
Que tipo de Emoções tem o espectador de Cinema? Que processos mentais do espectador levam ao desenrolar de Emoções “Cinematográficas”? Porque sente ele qualquer tipo de Emoção, se sabe que aquelas imagens são apenas fictícias? E finalmente, porque existe um consumo tão grande de filmes que provocam Emoções de Desprazer? Estas são algumas das perguntas que o Filósofo Carl Plantinga pretende estudar no seu artigo Emotion and Affect.
Durante a visualização de filmes, o espectador sofre então aquilo que alguns teóricos chamam de Paradoxo da Ficção, ou seja, sentem emoções reais perante objectos ficcionais. Segundo Plantinga, estes objectos podem ser Personagens, a Narrativa, o Filme como um todo e até mesmo as recordações e reacções de outros espectadores. Estes dois últimos integram-se nas Meta-Emoções, emoções provenientes de recordações nossas ou de outras pessoas que são despertadas através das imagens cinematográficas. Por exemplo, perante a morte de um personagem, não choramos a morte deste mas a de alguém que conhecemos, recordada através desse personagem.
Estas Emoções são geradas através de vários estratagemas, normalmente ligados directamente a géneros cinematográficos. Estes estratagemas (funcionando como uma espécie de pistas que originam um Humor e levam a uma Emoção) podem ser, entre outros, a voz dos actores, a história das personagens, a Mise-en-Scène, o movimento de câmara, a escala de planos, a montagem, o som e a música (ambos directamente ligados ao nosso psicológico inconsciente especialmente sendo que o nosso ritmo cardíaco tende a alinhar-se com o ritmo da música criando desde o alívio à ansiedade).
Embora referido brevemente por Plantinga, é necessário notar que para além destes estratagemas, os Neurónios-Espelho são igualmente importantes para compreender as reacções dos espectadores. Estes Neurónios, fundamentais à vida Humana, são responsáveis pelo reconhecimento de Emoções e Sentimentos no Outro (sentimo-nos tristes quando o Outro se sente triste, por exemplo). Essencialmente, os neurónios activos quando nos rimos, por exemplo, mostram actividade quando vemos o Outro rir. São portanto estes mesmos Neurónios responsáveis por nos ligarmos emocionalmente aos personagens, uma vez que, o cérebro reage às imagens Cinematográficas como se estas fossem reais.
A Verdade Por Detrás de Takashi Miike
Com 80 filmes realizados até à conclusão deste trabalho, Takashi Miike é o realizador do Novo Cinema Japonês com mais filmes realizados, ao mesmo tempo que se torna um dos mais conhecidos e igualmente um dos mais polémicos. Miike constitui então um dos realizadores da actualidade que mais puxa pelas emoções dos espectadores, criando uma Filmografia que nos leva desde a realidade insuportável à inocência da infância dos quais Ichi the Killer (2001) e The Great Yokai War (2005) são exemplos paradigmáticos.
Ichi the Killer (Koroshiya 1) leva-nos ao lado negro de Shinjuku onde Kakihara (Tadanobu Asano), um gangster conhecido pelo seu sadismo, investiga o desaparecimento do seu Chefe ao mesmo tempo que se prepara para a visita de Ichi (Nao Omori), um assassino com uma personalidade psicótica, conhecido por esquartejar as suas vítimas e deixar o local do crime repleto de tripas. Este é sem dúvida o filme com mais violência e gore na Filmografia de Miike, repleto de torturas e sadismo, tenderia a fazer o espectador desejar nunca ter visto Ichi the Killer. Então, porque isto não acontece?
Um dos aspectos que caracterizam a violência dos filmes de Miike é o facto de esta possuir sempre um contexto e uma justificação. Embora inicialmente possa parecer ao espectador que se trata de violência gratuita, um olhar atento perceberá que as personagens principais do filme, Ichi e Kakihara, são na verdade viciados em violência. Ichi manipulado para conhecer nada a não ser dor e Kakihara mal tratado pelo Chefe (eventualmente causador das suas cicatrizes e mutilações) até ao ponto de obter prazer através da dor que lhe causam e que ele causa aos outros.
Por outro lado, é visível que neste filme não interessa o que nos é mostrado mas a forma como Miike nos mostra determinados eventos, procurando determinadas reacções (sejam elas rir ou temer) no espectador, provocando-o, à semelhança de Alfred Hitchcock. Se repararmos bem, as cenas de violência mais realísticas não são mostradas (as violações nunca são explicitas, por exemplo) obrigando o espectador a amedrontar-se com a sua própria imaginação.
Quanto às cenas que poderiam suscitar reacções mais negativas, estas possuem um ambiente surrealista e até mesmo cómico ou ridículo (característica de Miike) devido especialmente ao exagero de efeitos especiais (o sangue exagerado quando Ichi corta membros das vítimas, por exemplo) e da actuação de alguns actores (interpretações normalmente mais leves e um pouco cómicas como, por exemplo, quando Suzuki é torturado por Kakihara), fazendo o espectador sair do ambiente do filme e perceber que este é apenas ficção (tornando as imagens mais toleráveis e até divertidas ao mesmo tempo que desliga qualquer Ideologia favorável à violência).
Este diálogo pretende ainda fazer o espectador pensar sobre a sua própria forma de lidar com a violência. Por exemplo, nas cenas finais quando Ichi e Kakihara se preparam para o duelo final mas acabam por ser interrompidos, o mais comum é o espectador sentir-se frustrado e ansioso pelo duelo. Miike prova ao espectador que este deseja ver violência nos filmes (razão pela qual assiste às suas obras) embora a renegue na vida real.
Finalmente, é importante notar que para Takashi Miike a escolha dos actores nunca é aleatória, procurando sempre o artista que mais se enquadra naquele tipo de papel. Se em vez de Susumu Terajima no papel de Suzuki ou se em vez de Tadanobu Asano como Kakihara tivéssemos outros actores, o resultado teria sido completamente diferente e o filme seria diferente .
The Great Yokai War (Yokai Daisenso) guia-nos por um Mundo perto do Apocalipse conforme Kato e Agi (dois Yokais, espíritos) se revoltam contra os Humanos, sendo que a única esperança reside em Tadashi Ino (Ryunosuke Kamiki), um rapaz tímido escolhido como o novo “Kirin Rider”. Esta narrativa relativamente simples traz um lado mais sensível de Miike que o espectador desconhecia, tornando-se uma obra que pode eventualmente ser vista por crianças (possuindo um PG-13 no Japão).
Baseado nas criaturas míticas japonesas conhecidas como Yokai, espíritos, The Great Yokai War transforma o gore já comum nos filmes de Miike em pura Fantasia. As cenas com excesso de sangue e tripas é alterado para um excesso na caracterização das personagens, tornando-as únicas. No entanto, o factor horror continua presente especialmente nas criaturas criadas por Kato e Agi, seres de metal (mistura entre os Yokai e ferro-velho) que atacam as cidades e outros Yokai.
A pouca violência que nos é mostrada é, à semelhança de Ichi the Killer, justificada sendo que temos os vilões (Kato e Agi) cujos procuram vingar-se dos maus-tratos do Homens e as batalhas com Tadashi, cujo luta para defender os Humanos e os seus amigos.
No entanto, algo que se mantém similar nos dois filmes é o facto de Miike procurar fazer o espectador sair do ambiente cinematográfico para o Mundo real através de cenas cómicas e quase ridículas. No caso de The Great Yokai War temos, por exemplo, a cena em que um dos Yokai mais velhos olha para a câmara e afirma que a sua viagem está a ser demasiado lenta, quebrando o ambiente do filme e confrontando o espectador com o facto de aquilo ser apenas ficção. Alguns momentos depois, o mesmo sucede quando a imagem pára e um aviso de “não tentem isto em casa, crianças” aparece.
De certa forma, Ichi The Killer mostra-nos uma versão mais real da vida de um gangster, levando as pessoas a ficarem chocadas por estarem habituadas aos filmes mais glamorosos. Miike faz-nos compreender, de certa forma, a crueldade da vida real. Mais do que isso, para Miike, eventualmente, não existe grande esperança para o Ser Humano, algo que apenas é mostrado através da Fantasia, com The Great Yokai War, exactamente por esta ser inalcançável.
Enquanto o primeiro filme nos faz olhar para o lado e repensar os nossos próprios conceitos de violência, o nosso desejo escondido de ver mais sangue e mais mortes (talvez razão pela qual o filme foi criado de modo a não haver necessariamente identificação com as personagens, tornando o choque de nos apercebermos que afinal em certa medida não somos tão diferentes dos personagens mais eficaz), The Great Yokai War traz-nos a um Mundo mais iluminado onde vemos um rapaz tímido tornar-se no grande salvador da Terra (razão pela qual o espectador tende a identificar-se com alguma das personagens que fazem parte do grupo de Tadashi), uma obra que nos fala de coragem enquanto Ichi The Killer nos fala de degradação.
O espectador vê estes filmes não necessariamente pela mensagem ou pelo desejo de violência (embora Miike já tenha provado que inconscientemente ele reside em todos os espectadores) mas pela curiosidade de saber o que irá o autor fazer a seguir, de que forma nos surpreenderá. Este espectador, no entanto, torna-se cada vez mais num espectador específico que, ao contrário do espectador comum, conhece bem o trabalho de Miike e é capaz de compreender as mensagens por detrás das suas imagens aparentemente sem significado.
Por exemplo, Ichi the Killer fala-nos de adultos perdidos sem aspirações e The Great Yokai War embora nos fale de coragem mostra também de que forma é quase inevitável que os adultos se tornem perdidos e sem aspirações, nomeadamente quando Tadashi não só não vê Sunekosuri (seu grande amigo de infância) como parece ter esquecido as lições ensinadas outrora sobre tolerância e amor ao outro (a criança que eventualmente se torna num dos assassinos de Ichi the Killer). Concluindo, parece que depois de compreendermos bem a obra de Takashi Miike percebemos que embora aparentemente diferentes, estas duas obras têm pontos em comum.
Bibliografia Recomendada:
- Livingstone, Paisley & Plantinga, Carl. The Routledge Companion to Philosophy and Film. Routledge, Estados Unidos da América, 2009. (ISBN: 978-0415493949)
- Mes, Tom & Sharp, Jasper. The Midnight Eye Guide to New Japanese Film. Stone Bridge Press, Estados Unidos da América, 2004. (ISBN: 978-1880656891)
Escrito por: Ângela Costa