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Kanzo Sensei

A partir do livro de Ango Sakaguchi, o novo filme de Shohei Imamura acompanha um médico de uma aldeia costeira Japonesa, no final da Segunda Guerra Mundial. O Dr. Akagi (Emoto) é conhecido por “Dr. Fígado” (o título Português será a tradução literal do original Japonês), porque todos os seus diagnósticos acabam por se reconduzir à hepatite. Nas proximidades da aldeia, existe um campo de prisioneiros, e o poderio militar aí instalado insiste nas restrições de utilização de glicose e recomenda privações alimentares à população, em prol do suporte ao esforço de guerra. O médico irá dedicar-se, de corpo e alma, ao estudo e ao combate da hepatite, contra todas as adversidades e com a ajuda de um grupo de “marginais”.

Imamura, vendedor de duas Palmas de Ouro de Cannes, não constrói uma obra tão marcante como o anterior «A Enguia/Unagi», mas este filme é tido como um título mais pessoal da sua carreira, em parte porque o seu pai foi ele próprio médico numa época conturbada. Os personagens que rodeiam Akagi são muito similares àqueles que rodeavam Yamashita n’ «A Enguia»; de uma forma ou de outra, isolados da comunidade, reunindo-se num grupo onde se conseguem integrar e afirmar. O meio físico também é semelhante: uma pequena aldeia piscatória. Onde antes a enguia era um símbolo omnipresente, aqui, paralelamente, existe uma baleia, cuja materialização é deixada para o culminar da narrativa.

«Kanzo Sensei» é um filme Japonês (em co-produção com a França) onde não existem justificações nacionalistas do cenário de guerra, sendo este até secundário face às movimentações dos personagens. O exército é representado como um inimigo do povo, cujos actos têm consequências práticas piores do que as que resultam da acção das nações com que o Japão se defrontava, uma vez que poderá ter um papel fulcral na disseminação da epidemia de hepatite. Se ela não existir só na mente de Akagi, claro. A população parece estar alheada da guerra. Apenas casualmente manifestam agrado pela existência próxima de um campo de prisioneiros, o qual mantém a aldeia protegida contra bombardeamentos inimigos, e se questionam sobre a utilidade da guerra para a sociedade Japonesa.

Os personagens que circundam o Dr. Akagi têm os seus próprios problemas e interesses, e a guerra apresenta-se como uma questão dos “outros” (os militares). Há um cirurgião viciado em morfina, um monge mais interessado nos assuntos do corpo do que em salvar almas, uma dona de um bordel, um prisioneiro de guerra e uma prostituta tornada enfermeira. Ela tem um moto – “nunca dês uma de borla, senão ao homem que amas” (com provável censura na tradução, como é hábito) -, tal como o médico tem o seu: “um médico precisa de boas pernas; se uma se parte, corre sobre a outra; se ambas se partem, corre sobre as mãos”. E ele corre, corre, durante todo o filme, esquecido de tudo o que não esteja relacionado com a sua luta. O isolamento dos personagens funciona a dois níveis; por um lado, têm um percurso que só a eles interessa, mas, por outro, necessitam do contacto com os outros. Um personagem pode rejeitar as solicitações românticas de outro, mas sabemos já que não pode passar sem ele, a um ou outro nível.

«Kanzo Sensei» é um filme fundado sobre um desenvolvimento de personagens consistente. Somos levados a “aprovar” os percursos que os seus intervenientes tomam, morais ou imorais, e não ficamos decepcionados quanto assistimos aos respectivos fracassos, porque o que nos importa é a pureza das suas intenções e não os respectivos resultados. O mesmo sucede em «Unagi», de onde aliás Imamura trouxe Akira Emoto, Misa Shimizu e Tomoro Taguchi.

Autor: Luis Canau (http://www.asia.cinedie.com)

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