O realizador que cria de forma a destruir as barreiras entre a Ficção e o Cinema regressa com uma nova obra de tom familiar, premiada com o Prémio do Júri em Cannes, seguindo Ryota Nonomiya e Midori Nonomiya, um casal que descobre que o seu filho fora trocado na maternidade. Ao longo de alguns meses, Ryota e Midori juntamente com o casal que adoptara o seu filho de sangue irão entrar numa espiral de dilemas éticos e morais.
Soshite Chichi ni Naru abre com Keita Nonomiya e os seus pais numa entrevista para a Academia de Ensino. A sala e todo o ambiente preparam-nos para a formalidade da Instituição: uma sala branca plana, geométrica onde a música ambiente se mantem Clássica. Os pais, vestidos com fatos ou vestidos simples negros, esperam os seus filhos terminarem as suas actividades, vestidos de igual com um número colado num papel (o nome e a sua personalidade não são importantes, pois as suas vidas serão formatadas ao longo dos anos).
Passamos rapidamente pelo local de trabalho de Ryota, também ele branco e simples, repleto de geometria. Em casa (um apartamento visivelmente caro e com um ambiente semelhante aos anteriores), Midori fala ao telefone enquanto prepara o jantar. É visível aqui que se trata de uma família tradicional onde o papel da mulher é permanecer em casa e tratar do lar enquanto o marido trabalha. Ao telefone, Midori refere que o marido deseja que o filho comece o mais rapidamente possível a pensar no futuro, embora este tenha apenas quatro anos.
Quando Ryota chega depressa critica o filho por este estar a jogar ténis na Wii em vez de praticar no piano (“se perderes um dia, demoras três a recuperar”) e a mulher por ir fazer massa (não devem abusar). Até este momento compreendemos que os Nonomiya são rígidos (falhar não é uma opção), uma família rica e tradicional japonesa. Apesar disto, Ryota gosta de passar tempo com o filho, quebrando a frieza aparente.
Midori recebe uma chamada da Maternidade onde deu à luz Keita, querem falar com eles com a máxima urgência. Ao chegarem lá, deparam-se com a verdade cruel de que Keita não é o seu filho de sangue. A culpa começa por ser entregue ao Hospital, passando rapidamente para Midori, sentindo-se revoltada por não ter percebido a diferença entre os bebés.
Algum tempo depois, o Hospital organiza um primeiro encontro entre Ryota, Midori e os Saiki, pais “adoptivos” do seu filho de sangue (pais biológicos de Keita). Um casal que não podia ser mais diferente. Quando entram na sala podemos ver de imediato o seu estilo mais informal e “moderno”. Enquanto vemos Ryota apresentando a família (Midori não refere uma palavra neste primeiro contacto), é Yukari, esposa de Yudai, que se apresenta e mostra liderança dentro do casal.
Durante a troca de fotografias podemos ver que enquanto Keita está sério numa fotografia de estúdio, formal, Ryusei está de fato de banho vermelho (uma cor viva que contrapõe as cores mais esbatidas usadas pelos Nonomiya) numa fotografia tirada numas férias de verão (não será por acaso que o seu nome significa “Dia Solarengo”). Os Nonomiya não gostam da fotografia, uma desgosto que permanecerá durante todo o filme.
Tentando mostrar mais sobre Ryusei, os Saiki mostram alguns vídeos filmados no rio onde Yudai afirma ser um excelente sítio para pescar (enquanto os Nonomiya visivelmente não saem de casa, os Saiki parecem passear várias vezes durante o ano). Descobrimos também que Ryusei tem mais irmãos, uma família que apesar de pobre é grande e feliz.
Os responsáveis pelo Hospital informam então ambas as famílias que em 100% dos casos, os pais optam pela troca das crianças e que esta deve ser feita o quanto antes, algo que assusta Midori e os Saiki (Ryota permanece em silêncio).
Tentando amenizar o choque os dois casais decidem encontrar-se num centro comercial e passar a tarde juntos. Enquanto as crianças se dão lindamente, os pais apercebem-se das suas extremas diferenças, especialmente quando Yudai se junta às crianças no parque infantil, deixando Ryota pouco confortável.
Ryota, nitidamente o líder da sua família, começa rapidamente a exercer a sua influência, insistindo em que o advogado dos casais seja um amigo seu e, mais tarde, que os Nonomiya poderiam ficar com as duas crianças, uma vez que, possuem uma vida económica muito melhor (tratando-os como se apenas se interessassem em dinheiro pelo facto de serem pobres e ameaçando inclusive de os levar a tribunal por não terem condições de criar os filhos).
Depois de uma primeira troca temporária, está na hora de um último adeus mas a adaptação não podia correr pior. Enquanto Keita parece estar a adaptar-se bem à sua nova família (provavelmente por ter um ambiente menos controlador), Ryusei recusa-se a aceitar os seus novos pais e a sua nova vida, levando-o a fugir de casa e a regressar aos Saiki momentaneamente.
Ryusei acaba por regressar a casa dos Nonomiya e os três começam uma nova etapa onde Ryota aprende a ser menos controlador e a aproveitar os momentos com o filho. No entanto, ao rever algumas fotografias Ryota apercebe-se que muito que goste do seu filho biológico, Keita é e sempre será o seu verdadeiro filho (sentimento partilhado pelos Saiki).
Kore-eda dá-nos um final que aparenta ser ambíguo pelo facto de não termos a certeza absoluta que a troca é refeita, provavelmente porque o importante nesta cena final não é os personagens regressarem ao que eram antes (cada casal com o seu filho) mas entrarem numa nova Era que os unirá numa família só.
Influências e Inspirações de Kore-eda
Yasujiro Ozu é necessariamente o primeiro nome que devo referir, mestre homenageado por Kore-eda em todos os seus filmes. Em Soshite Chichi ni Naru para além do próprio tema (drama familiar que Ozu tanto trabalhava) temos referências à guerra (a separação entre pais e filhos) e às corridas de cavalos (recordo Manbei em Kohayagawa-ke no Aki de 1961) mas também a elementos como o comboio, símbolo de passagem e elemento recorrente nos filmes de Ozu e Kore-eda, reflexo das profundas alterações que as personagens sofrem ao longo das narrativas.
Por outro lado, Soshite Chichi ni Naru é uma espécie de revisita à filmografia anterior do realizador, não apenas pelos elementos comuns (cenas de refeições em família, referência ao baseball, planos suspenso que embora não tenham importância narrativa são fundamentais para a personagem e re-utilização de actores como Kirin Kiki e Arata) mas também narrativamente lembrando Kiseki de 2011 (quando Ryota confessa ter fugido de casa aquando do divórcio dos pais), Aruitemo Aruitemo de 2008 (comparando a relação de adaptação entre, curiosamente, Ryota e Atsushi, pai e filho adoptivo), Dare mo Shiranai de 2004 (para além de uma cena em que Midori desce umas escadas semelhantes às de Dare mo Shiranai, em ambos os filmes há um certo abandono infantil embora muito mais subtil e menos grave em Sochite Chichi ni Nare), Distance de 2001 (nomeadamente a conversa entre o casal na varanda) ou até mesmo relembrando Without Memory de 1996 (Documentário onde o protagonista revê a sua vida através de fotografias e vídeos).
Fotografia e Som
Passando brevemente também pela Fotografia e Som do filme, ambos trabalhados em directo como Kore-eda já nos habituou, uma influência do Documentário, temos algumas cenas importantes e que vale a pena referir.
Quanto à Fotografia, trabalhada por Mikiya Takimoto (uma novidade na equipa do realizador sendo que a Fotografia é maioritariamente feita por Yutaka Yamazaki), a cena em que Keita faz o exame de sangue é notoriamente uma das mais “arrepiantes”. Uma sala escura, repleta de sombras, antecipando o Futuro negro que terá pela frente, uma verdade com a qual ele não saberá lidar.
Em termos de som, existe uma primeira cena importante quando após saberem o resultado das análises de sangue vemos Ryota e Midori no carro, parados numa passagem de comboio. A Música Clássica que tem vindo a acompanhar as cenas, símbolo de Calma e Serenidade, é abruptamente interrompida quando Ryota bate no vidro, perdendo visivelmente a sua calma. Tudo mudou.
Mais tarde, na cena do restaurante (à semelhança do que acontece em Aruitemo Aruitemo) podemos ouvir as crianças brincar em pano de fundo enquanto temos em primeiro plano a conversa entre os adultos. Contrariamente ao que normalmente é feito em Ficção, onde apenas a conversa dos pais seria ouvida, Kore-eda mostra-nos a importância de construir um ambiente que embora Ficcional nos pareça real.
Finalmente, durante uma aula de piano do jovem Keita, o som do choro e desespero da mãe é tapado pelo piano tocado pelo filho, tanto em forma de respeito pela mãe (que deve ter espaço para sofrer sem que o espectador se torne num voyeur indesejado) mas também talvez como metáfora, o filho que conforta a mãe.
Embora por vezes pareça que Kore-eda está cada vez mais a distanciar-se do Documentário, Soshite Chichi ni Naru trata-se de uma história que toca a todos os espectadores, quem sabe conseguindo mudar a sua forma de pensar ou pelo menos, obrigar a uma reflexão sobre o que é realmente a Família.
Escrito por: Ângela Costa