Mitsuya Majime é um jovem tímido e recatado que trabalha numa editora. Um dia, é convidado a integrar uma equipa dedicada à construção do novo Dicionário Japonês. É esta simples premissa que consagrou Fune wo Amu no Mainichi Film Award de 2013, sendo atribuído o Grande Prémio, o Prémio de Melhor Realizador (Ishii Yuya), Melhor Actor (Matsuda Ryuhei) e Melhor Direcção de Arte (Harada Mitsuo).
Mas como se transforma uma história que conta a criação de um Dicionário numa verdadeira obra cinematográfica? Este filme não será de facto algo que eu aconselharia ao público que prefere um bom Cinema Comercial, mas talvez será uma boa escolha para quem quiser desfrutar de um bom Cinema Independente.
Uma viagem pelo significado não só de palavras como “Amor” mas também pelo próprio significado da vida. Posso mesmo começar por uma pequena análise do título. Fune wo Amu, que em Português se pode traduzir por algo como Criando um Barco, é intitulado em inglês como The Great Passage. Ambos referindo-se ao nome do Dicionário que está a ser construído.
Durante uma das cenas, é nos explicado que o nome do Dicionário provem na ideia de que este objecto deverá ter como função, ajudar na travessia do Oceano que será a vida, auxiliando-nos na escolha das palavras que melhor exprimem os nossos sentimentos. Sentimentos esses, aliás, que o protagonista começa por ter dificuldade em exprimir, mas lá chegarei.
O Dicionário terá ainda a particularidade de ser o primeiro a possuir uma verificação total da Linguagem usada no tempo histórico do filme, de 1995 a 2010. A equipa pretende apagar as palavras que deixaram de ser usadas e adicionar expressões e termos que fariam parte da vida da juventude. The Great Passage, poderá então servir ainda de metáfora à passagem do tempo, à mudança de valores, de comportamentos, de palavras que morrem para dar lugar ao nascimento de outras.
A própria morte, excepto a de um personagem, é vista no filme como um elemento que embora transtorne as personagens, quase que passa despercebida. Umas pessoas vão, mas outras permanecem. Um ciclo que não pára de se renovar, tal como acontece com os dicionários ao longo dos anos e dos séculos.
Esta passagem de tempo acaba também por decidir a personalidade do protagonista. Matsuya Majime (Matsuda Ryuhei) é um jovem que embora tenha estudado para ser Linguista, é incapaz de exprimir os seus pensamentos. A única pessoa com que está à vontade para falar é a sua senhoria, que conhece há cerca de dez anos.
Conhecido pelos colegas como “o Sério”, devido ao apelido Majime, é convidado a pertencer à equipa de elaboração de The Great Passage. Este torna-se no seu objectivo de vida, chegando por vezes a ser o único realmente interessado na sua continuação, num grupo de pessoas que se reduz cada vez mais devido ao facto do Director não acreditar no sucesso de um Dicionário em formato de Papel quando cada vez mais a população mergulha na Era Digital.
Quinze anos depois do início do filme, The Great Passage está completo. A Sociedade não mudara tanto quanto se pensava. Tornando-se num grande sucesso logo no seu lançamento, o Dicionário mudará a vida dos seus utilizadores da mesma forma que mudou a dos seus criadores, principalmente a de Majime. Este fora o autor da palavra “Amor”, que tanto trabalho lhe deu. Um sentimento que parecia de fácil descrição até ele se apaixonar por Kaguya Hayashi (Aoi Miyazaki, que muitos devem conhecer pelo papel de Nana, no filme de 2005 com o mesmo nome), uma mulher que tenta ser Chefe de um restaurante de Sushi, num meio bastante machista.
Quanto às áreas que venceram os prémios do Mainichi Film Awards, facilmente se entende o porquê. Matsuda Ryuhei consegue uma interpretação fantástica, mostrando-nos um personagem cabis-baixo, sempre de ombros caídos, olhando o chão, e depois um personagem confiante, que olha os seus interlocutores nos olhos, escolhendo sabiamente cada palavra que profere. Há ainda a particularidade de na cena final, em que se espera que este peça Kaguya em casamento, voltarmos a ter um pouco daquele personagem tímido e retraído, num último momento cómico, mostrando que apesar de ter havido uma evolução no seu carácter, Majime continua o mesmo quando se trata de Amor.
A Direcção de Arte não poderia estar melhor e é impressionante o trabalho que foi dedicado, por exemplo, à casa onde vive Majime, uma verdadeira biblioteca. Pilhas e pilhas de livros, cada um com a sua singularidade.
The Great Passage é sem dúvida um filme cujo verdadeiro conteúdo não está sempre perante os nossos olhos, mas nas linhas ocultas de contemplação e reflexão sobre nós mesmos, ao mesmo tempo que nos oferece momentos suaves de Comédia.
Termino por aqui a minha pequena análise de uma das melhores obras cinematográficas japonesas que vi até hoje, deixando ainda algumas curiosidades abaixo sobre outras premiações do realizador Ishii Yuya e o Director de Fotografia Junichi Fujisawa, para quem estiver interessado em pesquisar mais sobre o trabalho destes dois grandes senhores.
Curiosidades:
O Realizador Ishii Yuya venceu o Prémio de Melhor Realizador em 2011 pelo filme Sawada Decides durante a 53ª Edição do Blue Ribbon Awards. O mesmo filme, recebeu ainda em Montreal os Prémios de Melhor Filme e Melhor Actriz (Hikari Mitsushima) na 14ª Edição do Fantasia Film Festival.
O Director de Fotografia, Junichi Fujisawa, venceu em 2012 o Prémio de Melhor Direcção de Fotografia pelo filme Rebirth durante a 35ª Edição do Japan Academy Prize (um dos 10 prémios entregues à obra). O filme em questão, conseguiu ainda arrecadar os Prémios de Melhor Actriz (Hiromi Nagasaku) na 54ª Edição do Blue Ribbon Awards, Melhor Actriz Secundária (Hiromi Nagasaku) na 66ª Edição do Mainichi Film Awards, Melhor Banda Sonora (Goro Yasukawa) na 7ª Edição do Osaka Cinema Festival.
Entre outros filmes, Matsuda Ryuhei, participou em I’m Flash, cuja review se encontra no site (aqui).
Escrito por: Ângela Costa