Yasujiro Ozu é conhecido por ser um dos Mestres de Cinema mas poucos são aqueles que compreendem a essência das suas obras. Viajando um pouco pela Cinematografia do autor, este artigo tem como objecto dar a conhecer um pouco sobre a visão do Mundo de um homem que começou por encarar o Cinema como um meio de entretenimento mas que com o passar do tempo o começou a sentir de forma única e inspiradora.
Do Aprendiz ao Mestre
Dois amigos universitários disputam o amor de uma rapariga durante uma viagem. Este é o resumo de Gakusei Romansu: Wakaki Hi (1929), uns dos primeiros filmes de Yasujiro Ozu . Ao contrário do que estamos habituados quando ouvimos o nome de Ozu, as obras até ao início dos anos 40 são um tanto ou quanto Hollywoodescas (herança de Tadamoto Okubo para o qual Ozu trabalhou como Assistente de Realização entre 1923 e 1927), tomando um tom mais sério conforme o desenrolar da Guerra. Yasujiro Ozu termina a sua carreira em 1963 como um Mestre do Cinema.
Depois de enviado para a guerra no final dos anos 30, Ozu é considerado um criminoso de Guerra em solo Singapurense, terminando numa plantação de borracha onde permanece até 1946, ano em que é reenviado para o Japão. Durante o tempo em Singapura, o autor acaba por se envolver no mundo da Poesia, o qual, juntamente com a experiência da Guerra, mudará para sempre a sua obra.
A composição dos seus planos e em especial a Montagem ganham novos sentidos e aproximam-se da forma de construção da Poesia, especialmente devido aos padrões (planos gerais seguidos por planos pormenores, terminando novamente em planos gerais, por exemplo), algo estudado por David Bordwell em Ozu and The Poetics of Cinema. Mas o que realmente interessa neste artigo é compreender de que forma o Passado de Yasujiro Ozu vem a alterar não apenas as narrativas mas a forma como estas são interpretadas.
Banshun (1949) traz ao de cima um Ozu mais maduro do que o jovem que criara Gakusei Romansu vinte anos antes. Para além de uma alteração profunda na técnica (entre outros a posição da câmara ao nível de alguém sentado no tatami como se o espectador fosse um convidado ou a negação das convenções de Hollywood como a Regra dos 180º e a montagem Campo/Contra-Campo), as suas obras anteriormente inconsequentes (Comédias que serviam apenas para entreter) transformam-se em puras reflexões sobre a Passagem do Tempo e, por conseguinte, sobre o Ciclo da Vida e a Efemeridade das Coisas, temas fortemente ligados à própria passagem das Estações do Ano e da sua consequência para o Homem, temas dos quais Banshun (1949), Bakushu (1951), Soshun (1956), Higanbana (1958), Akibiyori (1960) e Kohayakawake no Aki (1961) são exemplos paradigmáticos.
Mono no Aware
Acreditando-se Imortal e com vontade de viver sem grandes preocupações, este seria Yasujiro Ozu no início da sua carreira, tal como a maioria dos jovens da sua idade. No entanto, a guerra fá-lo entrar em contacto com uma visão mais negra do Mundo que eventualmente terminaria com a sua própria mortalidade, uma visão que o autor irá transmitir através das suas obras, uma visão que, como observa Nick Wrigley, se aproxima do conceito Mono no Aware.
Podendo ser traduzido como A Sensibilidade das Coisas, o conceito é utilizado pela primeira vez pelo Filósofo Motoori Norinaga (1730 – 1801) para descrever uma observação relaxada e contemplativa do Mundo, feita pelo individuo que se aproxima da morte, que compreende a sua mortalidade (seja ele um homem de noventa anos ou um jovem de vinte).
O pai que vê a filha ir embora para sempre, condenando-o a uma solidão que apenas terminará com a sua morte, mas aceita a realidade. A perda irreparável de um filho durante a Segunda Guerra Mundial. O amor entre dois jovens que embora correspondido é renegado, levando-os a viver o resto das suas vidas com alguém que não amam. A passagem do tempo que embora traga amarguras é vivida sem grande luta pela mudança, vivida com aceitação. Estes são os elementos principais da Filmografia Pós-Guerra de Yasujiro Ozu.
Símbolos de Mudança
Deixando momentaneamente de lado os elementos óbvios da passagem do tempo (as viagens, os casamentos, o envelhecimento dos personagens), é importante compreender os elementos narrativos subtis que marcam esta mudança.
Começo com o comboio, símbolo da passagem não apenas do tempo em si mas das grandes mudanças na vida dos personagens. Entre inúmeros exemplos, temos Higanbana (1958) e Akibiyori (1960). No primeiro, temos a cena em que Ayako vê passar o comboio onde estaria uma amiga sua recém-casada (sendo que Ayako acaba também por apanhar um comboio para ir ter com o homem que ama e enfrentar uma nova fase da sua vida) enquanto no segundo exemplo vemos dois trabalhadores da Estação de Tokyo comentar a quantidade de noivas que chegara ao local. Em ambos os casos o comboio é encarado como uma marca da mudança entre o estado de solteira e a nova vida como casada. Relembro também que, ainda em Akibiyori e à semelhança do que acontece a Tomi em Tokyo Monogatari (1953), Manbei morre depois de uma viagem de comboio, símbolo da passagem para o outro Mundo.
Seguindo esta ideia de passagem para o Mundo dos Mortos temos ainda planos com pontes e corredores vazios (símbolo de uma presença Humana que desapareceu) ou ainda o fumo e o vapor, símbolos do ritual da cremação . Por exemplo, em Akibiyori vemos um plano onde se encontra incenso a ser queimado, prevendo a morte de Manbei.
Estações do Ano
Incontestavelmente ligado à ideia de Passagem do Tempo estão as Estações do Ano, trabalhadas por Ozu nestas seis obras. Mais do que qualquer elemento, são as Estações que nos transmitem a ideia de Tempo, desde as flores que brotam na Primavera e as cores vivas do Verão até às folhas castanhas no Outono e os troncos nus no Inverno.
Época de grandes transições, a Primavera é um despertar para uma nova vida. Embora nem sempre simbolizem Felicidade, própria da Estação, as obras primaveris de Ozu, nomeadamente Banshun (1949), Soshun (1956) e Higanbana (1958), são marcadas pelo começo de algo.
Em Banshun (Primavera Tardia), a protagonista Noriko decide finalmente casar, após muitas insistências do pai, deixando a sua vida de solteira e despreocupação para iniciar uma vida de trabalho e cuido da casa e do marido. Soshun (Primavera Prematura) mostra-nos como o casamento de Shoji e Masako embora pareça terminado pode ainda ter um novo começo, ou recomeçar, quando Shoji se apercebe do quanto realmente ama a mulher. Finalmente, Higanbana (Flor de Equinócio) pode estar presente tanto na Primavera como na parte do Outono, sendo que no caso da protagonista esta obra marca a sua Primavera, nomeadamente quando Fumiko decide ir contra a vontade do pai e casar com o homem que ama e não com alguém escolhido por ele.
É importante ver também que o único nascimento anunciado num filme acontece em Soshun (Primavera Prematura), quando um dos colegas de Shoji aparece desesperado e com receio do que será do futuro do seu filho, um nascimento que será prematuro, devido aos problemas financeiros dos pais.
O Verão é como uma última oportunidade de mudança enquanto o Sol ainda possui a sua influência, algo que determina Bakushu (1951). Noriko, protagonista de Bakushu (Verão Prematuro), aceita casar-se tardiamente mas consegue encontrar a felicidade ainda a tempo.
O começo do fim (as folhas que caem e anunciam a “morte” da árvore) e uma época de desilusões – é assim que se pode descrever o Outono nas obras de Ozu, especialmente em Higanbana (1958), Akibiyori (1960) e Kohayakawake no Aki (1961). No primeiro caso, Higanbana (Flor de Equinócio) para além do lado de felicidade acima referido existe também um lado mais negro (afinal existem dois equinócios, dois lados da mesma moeda), nomeadamente porque o pai de Fumiko apenas dá valor aos dias na companhia da filha quando é tarde demais e esta já está próxima do seu casamento (sendo que as noivas quando casavam “abandonavam” a sua família original). Em Akibiyori (Outono Tardio), Akiko vê a filha casar, embora que relutante, e isto apenas significa o início de um período de solidão que terminará apenas com a sua morte. Por fim, Kohayakawake no Aki (Outono da Família Kohayakawa) é tal como o nome indica um influenciador não apenas para um personagem mas para uma família. Para além de Tsune que perde Manbei, o homem que amou toda a vida (sabendo que o seu próprio fim solitário estará próximo), temos a própria família de Manbei que entra num período de luto e tristeza.
Curiosamente não existem obras influenciadas pelo Inverno embora cronologicamente, de certa forma, Ozu tenha passado de Primaveras (1949, 1956 e 1958) para Verões (1951) e Outonos (1958, 1960, 1961). O Inverno poderá ser a sua própria morte. O fim das obras, o fim de um Ciclo.
No entanto, embora não seja um tema principal, o Inverno está a meu ver englobado nas obras através da cor branca. Partilhando esta cor do mesmo significado que o Inverno para o Oriente (morte, renascer, fim de um ciclo e início de outro), podemos ver a sua influência nas crianças e nos idosos (o nascimento de uma geração significa necessariamente a morte de outra) mas também nas noivas (a criança que cresceu e recebeu o dever de dar continuação às Futuras gerações e os pais que vêm os seus filhos começar uma nova família, apercebendo-se da sua própria mortalidade).
Setsuko Hara, de Noriko a Akiko
Curiosamente, a Passagem do Tempo nas obras de Yasujiro Ozu é igualmente importante nos próprios actores, especialmente para Setsuko Hara. A actriz que trabalhou com Ozu desde Banshun (1949) até Kohayakawake no Aki (1961), interpretou sempre personagens com o nome Noriko ou Akiko. Durante os primeiros filmes, onde vestia o papel de filha, usava o nome de Noriko que em japonês significa “filha exemplar”, algo que todas as “Norikos” eram, desde a jovem que casa contrariada para seguir o caminho que o seu pai quer (Banshun), à nora exemplar que cuida melhor dos sogros do que os próprios filhos (Tokyo Monogatari). O nome Akiko, significando “criança do Outono”, é utilizado nas últimas duas obras em que Hara participou, nomeadamente ambas personagens de mães, sábias e protectoras, que no caso de Akibiyori (1960) é uma mãe prestes a perder a única filha, devido ao seu casamento inevitável, destinada a viver em solidão até ao fim dos seus dias (tal como o pai de Noriko em Banshun).
Outro exemplo é ainda o caso de Mariko Okada, filha de Tokihiko Okada (igualmente actor de Ozu em Tokyo no Korasu de 1931) que interpreta o papel da jovem rebelde em Akibiyori e acaba como a mãe conservadora em Sanma no Aki (1962).
Do Japão para o Mundo
Quando se fala em Poesia não nos podemos esquecer do essencial, que esta é uma área conhecida por ajudar o indivíduo a despertar os seus sentidos e a compreender a beleza do que o rodeia. É exactamente isto que Yasujiro Ozu procura nos seus trabalhos, ajudar o espectador a olhar para além do óbvio, das narrativas sobre a jovem obrigada a casar, e contemplar o que rodeia as personagens que, apesar dos seus infortúnios (a filha que perde o pai, a mãe que perde a única filha), conseguem sempre olhar para o que resta e encontrar a felicidade, um verdadeiro Mono no Aware.
Afinal, é isto que acontece a Yasujiro Ozu, o jovem entusiasmado que se vê no meio de uma Guerra repleta de morte e sofrimento mas, mesmo assim, consegue olhar em volta e fazer belas obras de arte com o que restava de uma Sociedade destruída, ajudando-a a superar o seu Passado (de certo modo, as tradições começam a ser quebradas nos últimos filmes quando passamos a ter filhas que lutam contra os pais e seguem o seu próprio caminho ou até mesmo com o aparecimento de personagens ocidentais, por exemplo).
O seu trabalho é ainda hoje estudado e muitas são as homenagens, visíveis por exemplo no trabalho de Hirokazu Kore-eda onde, entre outros, o elemento do comboio e a dicotomia entre campo (tradição) e cidade (modernidade) está muito presente.
As Comédias Levianas tornam-se modelos que serão seguidos e venerados não apenas pelos Orientais mas também pelos Ocidentais que, apesar da descrença de Ozu que acredita que estes nunca iriam compreender as suas obras, começam a olhar para além do aparente, descobrindo nos anos 70 um novo realizador, uma nova perspectiva e uma nova Poesia.
Bibliografia
1. Ferreira, Carlos Melo. As Poéticas do Cinema. Edições Afrontamento, 2004
2. Nolletti Jr, Arthur & Desser, David. Reframing Japanese Cinema. Indiana University Press, 1992
3. Bordwell, David. Ozu and the Poetics of Cinema. Princeton University Press, (2ª Edição) 1994
Webgrafia
1. “Yasujito Ozu”. Senses of Cinema
(http://sensesofcinema.com/2003/great-directors/ozu/#b2).
Filmografia
1. Ozu, Yasujiro, realizador, Banshun,1949
2. –, realizador, Bakushu, 1951
3. –, realizador, Soshun, 1956
4. – , realizador, Higanbana, 1958
5. – , realizador, Akibiyori, 1960
6. – , realizador, Kohayakawake no Aki, 1961
Curiosidades:
1. Uns dirão ser coincidência, outros, destino. A família de Norinaga Motoori fazia parte de um grupo de mercadores que trabalhava para o Clã de Otsu, clã esse para o qual a família de Yasujiro Ozu trabalhara outrora.
2. A Ideia de uma vida passada de forma contemplativa e reflexiva está presente um pouco por todo o Mundo e nós temos um exemplo disso em Portugal, por exemplo, nas obras de Alberto Caeiro.
3. No final da guerra enquanto prisioneiro de guerra Ozu ficou a saber que um barco estava a caminho para ir buscar alguns japoneses de volta a casa (apenas haveria lugar para 28 pessoas e as restantes teriam de esperar mais alguns meses). Embora o autor tenha conseguido um bilhete para a viagem através de um sistema de lotaria, ele decide dar o bilhete a um colega que estava ansioso por rever a sua família.