Sem querer cair em lugares-comuns – coisa fácil de acontecer quando se escreve sobre escritores ou sobre livros –, começo por fazer uma vénia ao escritor japonês que me trouxe aqui: Kenzaburō Ōe. Nas suas palavras costuma manifestar-se aquela solta profundidade que gostamos de encontrar num livro.
Habitando actualmente no espaço dos oitenta e um anos, pode observar-se, através dos seus livros, que o escritor dedicou a escrita à sua vida. Isso mesmo. Dedicou a escrita à sua vida. Uma espécie de sucessivas tentativas em desmontar e voltar a montar a própria lógica dos seus acontecimentos exclusivos. A sua felicidade e os seus sofrimentos são a matéria-prima para a exposição em formato romanceado – a força da realidade mascarada com a força da ficção. Talvez tenha sido esta voz tão interior que lhe concedeu o Prémio Nobel da Literatura em 1994. Não interessa para o caso.
As Regras do Tagame, escrito em 2000, é um livro no qual podemos sentir vividamente que o escritor fala de si, mesmo que não soubéssemos, por ter lido na badana, que estamos perante uma história baseada em factos reais vividos pelo autor. Neste romance, o prestigiado realizador de cinema Gorō suicida-se e o escritor Kogito, seu grande amigo e cunhado, fica «sem chão» e mergulhado em tristeza. Antes do suicídio, Gorō havia enviado a Kogito várias cassetes onde reflecte sobre a vida e a amizade que os unia. Através do Tagame (aparelho que permite a audição das cassetes), Kogito recomeça uma viagem por terras já exploradas – o que viveu, descobrindo factos antes ignorados e assim, atribuir-lhe novos significados.
Neste percurso de tentar encontrar os motivos que levaram o seu amigo a «passar para o Outro Lado», Kogito descobre acontecimentos que podem ter ditado o fim de Gorō: uma relação com uma jovem desconhecida ou a ameaça sofrida pela Yakuza, a máfia japonesa que Goro satirizara num dos seus filmes. Não esqueçamos a importância de Chikashi (esposa de Kogito e irmã de Gorō) nesta relação de amizade que se alongou na vida e após a morte.
Kenzaburō Ōe era cunhado de Juzō Itami, cineasta que se suicidou em 1997. É fácil, a partir deste dado, perceber que estamos perante uma exploração individual em As Regras do Tagame. Kenzaburō Ōe não disfarça, nem o pretende, creio, a sua intenção pessoal de recordar para dar sentido; de separar para voltar a juntar. E, com ele, vamos caminhando pelas florestas da amizade e do amor, sem esquecermos de olhar para o chão e de sentir a importância das raízes.
As Regras do Tagame é uma obra repleta de simbolismo que se mostra num polido emaranhado de memórias, diálogos e flashbacks. Despedaçamo-nos. Mas, no fim, a unidade volta ao seu formato (não) original.
Escrito por: Carina Correia