Conheci Haruki Murakami em 2010 quando li Hitsuji o Meguru Boken (Em Busca do Carneiro Selvagem), provavelmente um dos livros mais peculiares do autor. A estranheza inicial depressa deu lugar a uma grande paixão pela obra de Murakami e desde então tenho vindo a ler os seus livros. Agora foi a vez de Fushigi na Toshokan (The Strange Library ou em português A Biblioteca Misteriosa).
Lançado originalmente em 2005, Fushigi na Toshokan foi traduzido em 2014 para o inglês por Ted Goossen, professor de Literatura Contemporânea Japonesa.
A história começa quando o nosso protagonista vai até à biblioteca devolver dois livros: Como Construir um Submarino e Memórias de um Pastor. Antes de regressar a casa para o jantar, o jovem decide informar a bibliotecária que está à procura de novos livros para ler. A mulher direciona o protagonista para o quarto 107 onde ele encontra um velho bibliotecário muito simpático que depressa se apronta a ajudá-lo. O protagonista pede-lhe livros sobre a forma como eram cobrados os impostos no Império Otomano.
Apesar do velho bibliotecário depressa encontrar os livros pretendidos, estes não podem ser levados para fora da biblioteca e depois de muita pressão, o rapaz concorda dirigir-se a uma sala para os ler. O caminho para a sala é sombrio e assemelha-se a uma espécie de labirinto. No entanto, a sala de leitura é na realidade uma cela com apenas uma cama, uma secretária, uma sanita e um lavatório.
O velho bibliotecário acaba por prender o protagonista nesta sala acrescentando que ele será solto apenas se conseguir memorizar os três volumes sobre o cobrar dos impostos no Império Otomano em três dias.
Desesperado por voltar a casa, o jovem junta forças com o “rapaz ovelha” (um escravo do bibliotecário) e com uma rapariga misteriosa. Depois de alguns contratempos, o protagonista regressa a casa onde a sua mãe prepara o pequeno-almoço.
Com apenas 77 páginas, Fushigi na Toshokan é uma mistura de pequenos textos e imagens retiradas da Biblioteca de Londres que nos ajudam a entrar no ambiente do livro. É preciso notar que as imagens da versão inglesa são diferentes das da versão japonesa, tomando agora formas mais sombrias.
O protagonista parece ser um rapaz bastante tímido, muito influenciado pelos ensinamentos da sua mãe, a sua única família. Por exemplo, durante o início da história, o protagonista afirma nunca entregar nada tarde, tal como ensinara a sua mãe. A sua preocupação com ela é também bastante visível pelo medo que algo lhe aconteça caso ele não regresse a casa para jantar. Durante a sua aventura, enquanto lê os livros do velho bibliotecário, o rapaz tem ainda tempo de viver um pouco da vida de Ibn Armut Hasit, um cobrador de impostos do Império Otomano. A pequena narrativa leva-nos à Turquia antiga, às suas paisagens, cheiros, pessoas e costumes.
Fushigi na Toshokan está ainda carregado de inúmeros simbolismos, quer no texto, quer nas imagens que o acompanham. De entre os que encontrei, existem dois que penso serem interessantes o suficiente para serem mencionados: o número 107 e o cão com que o protagonista sonha.
Embora podendo não ter sido propositado, o número 107 (que se pode encontrar na porta que dá acesso à sala do velho bibliotecário) possui um simbolismo espiritual bastante curioso.
- O número 1 está ligado a novos começos, motivações, progressos, liderança e sucesso. Apesar de tímido, o protagonista embarca numa nova aventura e para fugir da sua prisão torna-se num verdadeiro líder, pressionando o “rapaz ovelha” para o ajudar a fugir, sendo que no final tudo corre bem.
- O número 0 simboliza a eternidade mas também os ciclos. A estadia do jovem parece inicialmente eterna, especialmente quando o protagonista acredita estar preso para sempre.
- O número 7 representa as habilidades psíquicas ou o manifestar de desejos. Durante o seu encarceramento, o rapaz conhece uma rapariga, cuja origem não é revelada. Apesar desta não ter cordais vocais, o protagonista consegue ouvi-la e comunicar com ela. Outros elementos curiosos sobre esta personagem é que o “rapaz ovelha” não a conhece e a rapariga chega mesmo a afirmar que o seu mundo, o mundo do protagonista e o mundo do “rapaz ovelha” são distintos (durante a lua nova o seu corpo torna-se transparente). Quanto à manifestação de desejos, temos não só o desejo de fuga mas também o desejo para com a rapariga misteriosa. Para além dos elogios feitos pelo protagonista, este acaba por sonhar que uma das suas mulheres lhe serve o jantar, tal e qual fizera antes a rapariga.
No final, a viagem peculiar do rapaz torna-se numa experiência que de certo mudará a sua vida por completo. De novo repito que esta é uma análise mais livre e que embora possa não ser de todo a intensão do autor, achei uma curiosidade suficientemente relevante para a colocar nesta review.
Mas não é apenas o número 107 que tem simbolismos. O cão que o protagonista descreve no seu sonho, e que mais tarde o ataca a comando do velho bibliotecário, é descrito como uma cão grande, preto e com olhos verdes, uma das descrições mais comuns de jovens “cães negros” ou demónios em forma de cão.
Fushigi na Toshokan é sem dúvida um dos livros a ler este Verão. Se gostam de boa literatura, esta é uma obra incrivelmente criativa e misteriosa. Se, por outro lado, gostam de ler mas não têm muito tempo, o livro pode ser lido em cerca de uma hora. A obra é também ideal para crianças e jovens pela sua fácil compreensão.
Escrito por: Ângela Costa