Os caminhos de ferro (鉄道 tetsudō) foram inauguradas no Japão apenas em Outubro de 1872 como acção reflexa das reformas levadas a cabo durante o período que se seguiu à guerra civil de 1868-69 (戊辰戦争, Boshin Sensō) e que resultou no fim do xogunato Tokugawa e no início da era imperial Meiji. Estas medidas de ocidentalização e abertura do país firmaram um novo rumo para o país após séculos de isolacionismo. No entanto, foi ainda durante a era Tokugawa que o país tomou consciência dos caminhos-de-ferro, tendo ficado célebres os esforços do contra-almirante norte-americano Matthew Perry que, em 1853, estabeleceu os primeiros tratados comerciais entre os dois países e cuja demonstração e oferta de uma locomotiva a vapor causou sensação (e demonstrou inapelavelmente o avanço tecnológico do Ocidente – ainda que outras demonstrações tivessem tido lugar antes e depois).
Assim, e para contextualizar, enquanto por esta altura já se fabricavam locomotivas em Inglaterra que ultrapassavam os 100km/h, no Japão ou se andava a cavalo ou a pé. Esta linha inaugural ligava Shimbashi em Tóquio ao bairro estrangeiro de Iocoama, Sakuragichō em 53 minutos – a ligação actual demora cerca de 40min). Isto não é de estranhar uma vez que o seu desenvolvimento se deveu à intervenção de companhias, engenheiros e materiais britânicos, sob atenta observação dos seus estudantes japoneses. Este processo de aprendizagem e importação, característico deste período intenso de industrialização que constituiu a Restauração Meiji, teve continuidade mas em 1879 haveria já tripulações exclusivamente japonesas a trabalhar nos comboios e nas linhas, a que se seguiu a criação de companhias de caminhos de ferro de capital privado em 1884 e a consequente e rápida expansão de linhas pelo arquipélago. Mesmo para o trânsito urbano abriu em 1882 uma linha de caminhos-de-ferro com carruagens ainda puxadas a cavalo, em Tóquio. No entanto, em 1893, teve início a criação de locomotivas com a chancela (tendo o primeiro eléctrico chegado a Quioto dois anos depois), ainda que sob supervisão de especialistas estrangeiros (sobretudo britânicos, americanos e alemães), e com várias construtoras a surgirem até ao virar do século, sendo que por esta altura os caminhos-de-ferro do país se estendiam já de Aomori ao norte a Shimonoseki a sul (falando da ilha principal de Honshu).
O facto de grande parte das linhas serem de companhias privadas permitiu uma expansão mais rápida da rede, uma vez que o governo tinha ainda poucos excedentes para projectos públicos após a guerra civil que constituiu a Revolução Satsuma de 1877 (西南戦争 Seinan Sensō); no entanto, em 1906-07 (após as vitórias nas guerras com a China e Rússia) pôde (por motivos estratégicos) nacionalizar essas linhas sob a tutela do que é hoje conhecida como a JR (Japan Railway curiosamente sofreu nova privatização em 1987). Com a expansão do Império, foi também prioridade o estabelecimento de linhas de caminho-de-ferro nos novos territórios, como foram a Coreia, Formosa, Sacalinas e Manchúria.
A participação do país na Grande Guerra (pela Entente) relevou os caminhos-de-ferro como meio fundamental à produção industrial do esforço de guerra, assim como estabeleceu definitivamente a nova identidade do Japão como país moderno e de influência mundial, até pelo empreendimento de vários acordos comerciais de que agora precisava para fazer face ao grande crescimento demográfico que tinha atravessado nestes 60 anos.
Pelo facto de o fenómeno de motorização ter ocorrido bastante tarde no Japão (apenas por volta da década de 1960; por comparação nos EUA terá ocorrido cerca de 50 anos antes), o estabelecimento de caminhos-de-ferro inter-cidades teve um longo desenvolvimento e expansão. Assim, e continuando este progresso, é inaugurada em 1914 a Estação Central de Tóquio (ver mais aqui), em 1927 o primeiro metropolitano do Extremo Oriente com a abertura da linha de Ginza nesta mesma cidade e, um ano depois, chegam os primeiros tróleis.
Na Segunda Guerra Mundial as linhas de caminho-de-ferro passaram a ser controladas pelas forças armadas, com redução do serviço para civis a partir de 1943, assim como desmantelamento de linhas e locomotivas para fazer face à necessidade de ferro e aço para fins bélicos. Para além disto os efeitos directos dos bombardeamentos estratégicos a que o país foi sujeito danificou sobremaneira as linhas existentes (Okinawa é o caso mais extremo uma vez que, tendo perdido todas as suas linhas, apenas voltou a contar com os caminhos-de-ferro com a inauguração do monocarril). No entanto, em 1942 foi terminado o túnel Kanmon, o primeiro túnel submarino do Japão, e que liga as ilhas de Honshu e Kyushu. Para além disso, num espírito verdadeiramente diligente e zeloso (à maneira japonesa) várias curiosidades sobrevêm: se após os bombardeamentos sobre Tóquio o serviço foi reposto no dia seguinte também após o ataque nuclear de Hiroshima a linha Sanyō, que liga Kobe a Fukuoka (passando por Hiroshima) foi restabelecida dois dias depois e os eléctricos voltaram a percorrer a cidade apenas três dias depois!
No pós-Guerra a recuperação manteve-se difícil com a falta de materiais, sobrelotação das carruagens (resultando em vários acidentes), assim como apropriação dos serviços pelo quartel-general das forças de ocupação dos EUA. Nos anos de 1950 continuou a proceder-se à electrificação das linhas e começaram a ser retiradas de serviço as locomotivas a vapor (até meados dos anos 70, sendo que muitas seriam convertidos para motores eléctricos ou a diesel). A machadada final seria em 1964 com a inauguração do revolucionário comboio-bala Shinkansen (com a linha entre Tóquio e Osaca; ver mais aqui) , por ocasião dos Jogos Olímpicos de Tóquio, o que marcaria uma era dourada no que diz respeito tanto aos caminhos-de-ferro como à prosperidade económica do país.
Como referido atrás a motorização veio também relegar os eléctricos e outros transportes urbanos de superfície para as linhas subterrâneas ou através de monocarris (que iniciaram em 1957, com a linha do Jardim Zoológico de Ueno, em Tóquio). Contraposto a este crescimento do tráfego urbano, especialmente na área metropolitana de Tóquio, surgiu o efeito paradoxal de uma maior utilização do metropolitano (por congestão das vias rodoviárias), com a consequente expansão para quatro pistas de trânsito nas suas cinco linhas principais (Sōbu, Tōhoku, Yamanote, ChūōJōban). Para além disso são hoje em dia várias as cidades que têm um sistema de metropolitano, a saber: Fukuoka, Kobe, Quioto, Nagoia, Osaca, Sapporo, Sendai, Tóquio e Iocoama. Por outro lado, no interior, o caminho-de-ferro tem até aos dias de hoje perdido alguma importância, com serviço reduzido e baixa utilização.
Actualmente há 27,268km de caminho-de-ferro em todo o arquipélago, sendo que 46 das 50 estações mais movimentadas do mundo (incluindo estações de metropolitano) são japonesas (5. Yokohama, 4. Umeda-Osaka, 3. Ikebukuro-Tóquio, 2. Shibuya-Tóquio, 1. Shinjuku-Tóquio). Hoje em dia o Shinkansen é ainda o rei dos caminhos-de-ferro japoneses, e tem vários comboios de luxo na sua frota. Para além de competir directamente com o avião (pela rapidez, mas também por haver um muito maior número de partidas), a própria tecnologia tem sido exportada para vários países, como a China, Brasil, Índia, Inglaterra, Canadá e Estados Unidos da América. Para o futuro há grande esperança que os comboios de levitação magnética (maglev), em desenvolvimento desde os anos 70, possam ultrapassar os recordes de velocidade e rendimento e voltar a marcar uma nova revolução dos transportes.
No que diz respeito ao impacto que os comboios tiveram na cultura popular, a locomotiva a vapor japonesa por excelência é a D51 (Degoichi), produzida entre 1936 e 1951, sendo a C62 também conhecida por bater recordes de dimensão e velocidade.
Uma das obras que melhor ilustra o simbolismo que a era do vapor tem na cultura popular japonesa é 銀河鉄道の夜 Ginga Tetsudō no Yoru (Night on the Galactic Railroad; sem tradução para português), de Kenji Miyazawa, publicada postumamente em 1934, e, para os interessados, também adaptada para anime em 1985. Esta obra está também na génese da manga Galaxy Express 999 (銀河鉄道 999(スリーナイン)Ginga Tetsudō Surī Nain (cujo visual é fiel à loco C62), de Leiji Matsumoto.
Por outro lado, o fanatismo por comboios e caminhos-de-ferro (撮り鉄 tori tetsu trainspotter) têm hoje várias dimensões para lá da máquina fotográfica e do caderninho com a listagem das locomotivas. Seja o trainspotting virtual, sejam os percursos paisagísticos com máquinas a vapor restauradas, sejam os vários museus especializados, sejam restaurantes modelados de vagões-restaurante de comboios famosos (como o luxuoso Cassiopeia, sejam os famosos ekiben, uma classe especial de bento feitos especificamente para quem viaja, seja no cinema, com a estreia do filme RAILWAYS 49 歳で電車の運転士になった男の物語 Railways 49-sai de Densha no Untenshi ni Natta Otoko no Monogatari em 2010, sejam todo o tipo de aplicações de telemóvel, desde indicadores de congestão do metropolitano a simuladores virtuais, para além da larga oferta de videojogos, brinquedos e modelismo, incluindo o Diorama Kyoto Japan, o maior “parque” de modelismo ferroviário no Japão, com controlos mecânicos realistas.
Finalmente, para quem pensa em viajar de comboio no Japão: http://www.clubotaku.org/niji/socie/guia-viajar-de-comboio/
Escrito por: João Mota