A “Saída” de Natsuo Kirino é uma história profusa de contornos obscuros. Como em tantos géneros artísticos da produção japonesa, não é um livro que possa ler para descontrair pacificamente, não é daqueles aconselháveis a ler antes de dormir. Isto é, a menos que o leitor esteja confortável ao ler descrições de violência doméstica, sexual assim como descrições de decomposição de corpos que, apesar de se apresentarem com uma nota de pragmatismo como descreve Masako “um trabalho que tem que ser feito”, não deixa ainda assim de projetar na imaginação do leitor uma série de imagens, no mínimo, grotescas. Eu pessoalmente tive pesadelos quando peguei no livro e li uma larga fatia num curto espaço de tempo. Já ouvi relatos de pessoas que se sentiram fisicamente indispostas. Eu sei que o gore nos media é mais que presente nos dias que correm, mas não devemos subestimar o impacto da nossa imaginação aquando de tais descrições.
Este livro é uma espécie de “Sex and City” macabro já que seguimos as peripécias de quatro colegas, mas não se espere um “glamour” meloso e uma amizade saída de um conto de fadas. Neste livro seguimos o trajeto de mulheres unidas pelo seu trabalho de produção em linha numa fábrica de comida pré-feita durante um turno da noite. Interessante a referência aos brasileiros que com elas trabalham – este grupo de brasileiros descendentes de japoneses que procuram no Japão uma alternativa à falta de mobilidade social no Brasil. Têm a possibilidade de imigrar, passando lá o tempo que quiserem sem qualquer visto (situação rara já que o Japão controla rigorosamente as suas fronteiras). Entre os japoneses com o seu conservadorismo “pré-guerra” que procuraram fortuna a trabalha nas quintas brasileiras, há aqueles de um Japão moderno liberal que preferem regressar, muitas vezes já na segunda geração. Estes gaijin brasileiros são representados no livro com hostilidade: homens altos e fortes que no ambiente do livro parecem assustadores, para além de um caso particular de um homem de origem brasileira que é um sex ofender que persegue as mulheres da fábrica. Logo se apercebeu que “a terra dos seus antepassados não prestava muita atenção ao facto de que o seu sangue lhe corria nas veias (…) no aeroporto, nas ruas, ele sabia que era visto como um “gaijin” e isso magoo-o”. Uma expressão da dificuldade de integração na sociedade fechada que é a japonesa.
Tudo contribui para a construção do cenário negro que serve de fundo ao longo das páginas, só como um autor japonês o poderia descrever: morte, ódio, matança e algum amor (num sentido muito próprio). Entre as mulheres que vivem sem exceção com graves dificuldades financeiras, um trabalho que lhes desregula o descanso e a sanidade física e mental, todas parecem presas a casamentos disfuncionais com homens detestáveis, preguiçosos ou distantes.
A forma como se tornam íntimas não passa por falar em aventuras sexuais com milionários mas antes porque precisam todas de dinheiro e compram o silêncio e o trabalho uma das outras, sobretudo aquando do principal “story arc” que envolve o assassinato de um dos maridos, todas as diferentes mulheres com diferentes personalidade se unem não em torno de sentimentos de compaixão mas por puro pragmatismo. (É quando vejo que a minha comparação com “sex and the city” é despropositada, mas acho que seria um enredo fabuloso seguir o mesmo tipo de “story line” de “sex and the city” aplicando-lhe um lado violentamente realista, de vidas realistas) Apesar da empatia que se cria com as peripécias mais negras, não considero que o leitor se reveja em nenhuma das personagens. Há um gradual reenforço das relações interpessoais entre as personagens. No entanto, este não é um livro sobre amizade, mas antes um livro sobre desespero. Macabro, grotesco, com um lado vigorosamente feminista, que expõe pobreza, miséria, na sua maior parte não intencional mas também intencional (como na personagem de Kuniko). Nenhuma das mulheres se sente realizada a nenhum nível da sua vida, nem mesmo perante a morte.
Depois do primeiro homicídio e do segredo aparente em que se conseguira tornar, na segunda metade do livro Masako e as colegas encontram no crime uma oportunidade de negócio. Uma saída para todos os seus problemas. Contudo, cortar humanos em pedaços e espalhá-los no lixo não poderia ser um negócio sustentável.
Perturbador como se pretende, leva o leitor a criar empatia com uma sequência de crimes.
A prosa tem um ritmo apertado, tenso e constante, nunca com pressa para entregar respostas, o que alimenta o suspense, entretendo e cativando.
É o retrato ácido pouco glamoroso de uma sociedade mecanizada e complexa no seu caos tão aparentemente organizado, passo o paradoxo. Explora o lado dos empobrecidos, marginalizados numa sociedade de economia aparentemente pujante: o racismo nas prostitutas chinesas, nos brasileiros; o sexismo – as mulheres como cidadãs de segunda classe; e, claro, a subjacente miséria retratada das classes ostracizadas. As mulheres reféns da sua pobreza e do desprezo dos outros como Yoshi, os gananciosos, consumidores superficiais como Kuniko, a inteligente, trabalhadora mas discriminada e mal paga “menina de escritório”, como Masako as mulheres vítimas de violência doméstica, como Yayoi. Todas à procura de uma saída que se revela um beco sanguinário que “reduz um humano a um objeto como outro objeto qualquer”.
De lembrar que o Japão é um país onde as estruturas tecnológicas e o mundo de aparências nas grandes metrópoles como Tokyo aparentam uma certa modernização de pensamento mas a não esquecer que os tradicionalismos e as mentalidades de um passado recente continuam infiltradas na sociedade, sobretudo no que toca às questões de género. A personagem principal, Masako, é uma mulher de meia-idade que se ancora a um encobrimento de um homicídio. O livro transmite a perceção criada sobre uma mulher inteligente, forte e pragmática como uma mulher que assusta. Esta experiência empurra-a ainda mais para a marginalização social. Acaba por ter um efeito em Satake, o yakuza com um passado de assassínio bruto.
O culminar do enredo é obviamente um clímax não revelável aqui na crítica ao livro, mas posso dizer que é tão bizarro como a restante leitura. No www.goodreads.com o livro está classificado em Literatura japonesa mas também na categoria d’ “Os mais perturbadores livros alguma vez escritos”, ao lado de “American Psycho”, “Lord of the Flies”, “1984” e “A Clockwork Orange”.
Escrito por: Sara F. Costa
Ogata Tetsuo
Este artigo deu-me muita vontade de ler este livro… vai já para a minha wishlist.
Obrigado Sara ^_^