Fruto de uma sociedade sobrecarregada de imagens, que enchem o quotidiano japonês, o movimento artístico conhecido por Superflat é uma reflexão do artista Takashi Murakami, que formulou para a suas obras um conjunto de características que depressa de tornaram um manifesto partilhado por alguns artistas, designers e criadores de Anime e Manga japoneses.
Inicialmente o percurso de Murakami, que fez uma licenciatura, um mestrado e um doutoramento na Universidade Nacional de Belas Artes e Música de Toquio, foi o de estudar intensivamente a arte do período Edo (1615-1868), sobretudo a amalgama de influências orientais e ocidentais que compôem o estilo Nihonga (ou Niho-ga como também é conhecido).
Embora inovador, este tipo de expressão artística, reconhecida como uma revolução artística que apenas teve um paralelo no Modernismo ocidental centenas de anos depois, não expressava o que é o actual sentimento artístico japonês, o que levou Murakami a interrogar-se sobre o que poderia ser realmente a Arte num Japão actual, dominado pela publicidade e com um sistema económico extremamente rígido e competitivo mundialmente.
Após uma viagem a Nova Iorque em 1989, onde pode constatar abordagens artísticas diferentes, Murakami começou uma busca sobre o real significado das imagens que rodeavam o quotidiano pós-moderno japonês e sobretudo o estudo da subcultura Otaku. Dessa reflexão nasceu o conceito Superflat e uma exposição colectiva, com o mesmo nome, que foi mostrada em várias cidades mundiais depois de 2000.
Esta exibição, a mais completa mostra de nova imagem japonesa reúne trabalhos de artístas como Henmaru Machino, Yoshitomo Nara, Chiho Aoshima, Koji Morimoto, Shigeyoshi Ohi, Kentaro Takekuma, Groovisions e claro de Murakami, entre outros, unidos numa análise sarcástica da sociedade de consumo japonesa, onde imagens kawai-i, inspiradas por obras de Anime ou Manga e associadas a um grafismo típicamente japonês Pop, são distorcidas e retiradas dos seus contextos iniciais. O uso de insinuações (muitas vezes de teor sexual) e o humor negro típico dos Otakus gera nas obras destes autores (e em Murakami em particular) uma crítica ambígua e muitas vezes pouco clara, mas sempre mordaz e incorrecta.
O próprio nome deste conceito revela a falta de profundidade e perspectiva (literal) desde sempre nas artes gráficas japonesas, que usavam a deformação das formas para conseguirem expressar essa profundidade, sempre tendo como pontos de referência os quatro cantos da superfície onde eram realizadas.
Usando esta distorção como ponto de partida e o imenso universo Pop das obras de Anime e Manga e dos produtos baratos de merchandising que copiavam (muitas vezes infringindo as leis de copyright) superheróis e personagem conhecidas da cultura popular ocidental, estes artistas contruiram um universo artístico onde o que pode ser considerado Arte é destruido, para dar lugar a uma imensa galeria de personagens Pop de consumo de massas. Terá sido talvez por isso que quando esta nova vaga da Arte japonesa tomou de surpresa o público ocidental, a maior parte dos críticos de arte apressou-se a fazer um paralelo, em parte útil e acurado, com o movimento Pop americano dos anos 60 e comparou Murakami a Andy Warhol. O Superflat traduz de facto o que é o Pop japonês, na sua forma mais imediata, e um dos objectivos de Murakami e dos seus companheiros de luta foi sempre o de fazer uma comercialização das obras, acessível ao público em geral.
Tal como a obra de Warhol, o Superflat tornou-se um movimento de reciclagem das imagens banais do quotidiano, que transformadas, chegam ao consumidor (um conceito-chave para ambos Warhol e Murakami), através dos mais variados modos, e de forma acessível, quase entendendo que poderiam ser vendidas até no mais normal supermercado. Murakami apresenta-se desde logo como um bem sucedido business man que vende muito do seu merchadising a preços baixos, por vezes após fazer estudos de mercado, enquanto produz monumentais peças únicas que serão vendidas a preços exorbitantes para o comum dos mortais.
Também a pose, a falsa pretenção, o sarcasmo oculto e a ingenuidade são constantes de ambos estes dois artistas, sendo Murakami um descrente da verdade do conceito artístico, conceito esse que foi importado para o Japão apenas no século XIX, sendo as diversas formas artísticas japonesas até então, apenas formas de enternimento divididas pelos gostos das variadas classes sociais.
O que o Superflat veio trazer foi a percepção de que todos os produtos de entertenimento que nos rodeiam (com as suas personagens simultaneamente kawaii e transloucadas), podem ser, ou são, de facto, Arte.
Se isso será válido ou reconhecido pelas massas de consumidores, é discutível, mas de certa forma artistas como Takashi Murakami ou Hanmaru Machino, que partilham uma visão amargurada, negativa e por vezes até apocalíptica do Japão actual, já criaram (ou recriaram) os avatares para todos nós que estamos inseridos numa sociedade de consumo e que mastigamos as suas imagens de uma forma tão natural.
Resta apenas agora olhar para a nossa cultura popular, tal como o fizeram no Japão estes artístas, e apreciar o que poderá ser a arte no século XXI, através dos nossos leitores de DVD, das nossas consolas de jogos e computadores e das nossas revistas de consumo massificado.
Escrito por: Nuno Barradas