A indústria de videojogos japonesa morreu. Sirva a primeira frase deste texto como indicação do tom algo mórbido da opinião necessariamente ácida dum nobre cavaleiro da causa nipónica que, infelizmente, assistiu ao homicídio da citada industria em primeira fila, bem aconchegado e com bilhete para o backstage da coisa. E que coisa macabra, meus caros.
A antiga maior potência na área do entretenimento digital não murcha por falta de capital, nem por escassez de arte ou competência técnica; a queda do Japão enquanto líder dos videojogos resulta da colocação do dólar americano num altar, da especial atenção dada pelas maiores editoras do país ao adolescente ocidental que, indirectamente, assassinou a melhor criatividade japonesa. Caro leitor – a culpa disto é sua, todinha. Sim! Não olhe para mim com essa cara; não fui eu quem escolheu oferecer milhões à Epic Games pelo fabuloso trabalho do estúdio em Gears of War, onde um ser parcialmente humano e dopado liquida uma raça alienígena com armas de tamanho equivalente ao próprio corpo, seguindo um guião com impacto emocional semelhante à vida sentimental duma cadeira. Também não fui eu quem abraçou a série Call of Duty ano após ano, gritando bem alto – “Sim, eu aceito pagar 60€ por uma reedição dum shooter estéril pintado a tons de castanho, abençoado com a arte mais aborrecida do meio.”
Espanta-me a suposta complexidade do mercado de videojogos que, trimestre após trimestre, é escrutinada pelos Messias da desgraça da praça – a saber, camaradas norte-americanos trajados a gravata e botões de punho, cuja ligação a este universo começa e acaba na respectiva remuneração mensal.
Saiba o leitor que toda esta confusão de milhões se explica facilmente; como todos os mortais deste canto da galáxia, as grandes empresas de videojogos também têm contas para pagar. Especialmente as japonesas. Essas, ainda inchadas pelo sucesso comercial e criativo das últimas duas décadas, decidiram contribuir para o naufrágio tragicómico da indústria que representam com produtos aquém das expectativas, pouca qualidade no departamento artístico e, ainda pior, com hipocrisia. O porta-bandeira dessa postura nipónica será, por ventura, Keiji Inafune, guru da Capcom e criador do saudoso Megaman. O designer japonês criticou a indústria e processo criativo do seu país à boca cheia, irritou-se com a perda de identidade dum Golias que se veste de David, disse mesmo que a indústria de videojogos japonesa está “acabada”.
Nessa altura, Inafune também apresentou a sua última pérola digital – um festival de matança de zombies pintado a vermelho sangue, com protagonista, sotaque e estética a gosto do público ocidental, chamado Dead Rising 2. Compreende-se o apego da gigante de Osaka ao grande mercado do dólar e do euro, afinal a empresa tem de pagar salários a quem esculpe obras memoráveis como Bionic Commando e aos senhores que decidem que comprar 3 vezes o mesmo jogo é uma boa ideia, só não se entende vergonhosa hipocrisia de quem trabalha para criar sonhos numa das maiores fábricas daquela parte do mundo.
A queda do Japão neste mercado confirma ainda que o público-alvo de empresas como a Square-Enix, Capcom ou Namco-Bandai está algures entre o adolescente americano que ainda luta contra a acne mas já cospe asneirada via Xbox Live e o novo adulto com pouco tempo para jogar e ainda menos para considerar adquirir um disco que fuja ao citado quadro castanho-cinza de hoje. Saiba ainda que não verá mais grandes obras de génios como Yuji Naka ou Yu Suzuki por culpa desses hereges – os pacatos adeptos do Wii Remote, Kinect e Playstation Move pouco ou nada têm a ver com o crime.
Ao coração do desenvolvimento japonês dos últimos anos faltou cérebro. Sobretudo isso. Faltou coragem para acreditar na magia japonesa de ontem, para entender que no novo sistema mercantil desta indústria ganha quem é diferente, nem sempre vence quem emula a estratégia ou conceitos doutros. Ao Japão pede-se ousadia para se reinventar profundamente, para que volte a oferecer experiências assentes numa base cultural e artística sólida e que, quem sabe, volte a comandar o destino duma forma de entretenimento cada vez mais variada mas menos interessante.
A indústria japonesa, aquela que morreu, não precisa de ser salva, mas de renascer.
Autor : Daniel Costa (daniel.costa[at]nowloading.biz)
Odrakir
Gostei do artigo e concordo com quase tudo o que apontas.
Penso que o problema do Japão foi fechar-se ainda mais do que já estava. São imensos os títulos criados no Japão que não vêem a luz do dia no resto do mundo… faltou-lhes audácia para arriscar, no entanto acredito que isto seja temporário. Um dia o mundo irá cansar-se dos CoDs e MWs e abrirá os olhos para jogos com alma e criatividade, tal como o Japão nos habituou 🙂
dominus
Ainda há coisas como o Catherine(Atlus rules) not much I know mas ainda é alguma coisa there is still hope out there .
Tespian
Honestamente não concordo com o ponto fulcral de que a decadência da industria japonesa venha dos rehashs ocidentais, dado que estes mesmos aprenderam com a dita cuja.
É difícil não pegar num jogo japonês famoso actualmente que não tenha tido umas 30 iterações e mais uns 15 spin-off’s (Mario, Final Fantasy, Dragon Quest e afins). E apesar de isto se estar a suceder com a industria ocidental, esta começou bem mais tarde a fazer o mesmo, portanto em vez de 30 iterações, temos 7/8, algo mais “razoável”.
No entanto o ponto fulcral da coisa é que os jogos não são maus, apenas não apelam a nós. Pode-se dizer que agora é tudo grey’n’blur FPS’s por todo o lado, mas se olharmos para trás, o mercado era completamente dominado por plataformers, desde Crash Bandicoot, Spyro, Croco, etc etc. E se voltarmos ainda mais atrás no tempo, havia uma quantidade absurda de graphical adventures.
No caso da industria japonesa, esta apenas ficou presa a uma fase anterior durante demasiado tempo e, infelizmente, continua nessa fase sem se lembrar de que as coisas evoluem.