Muitas vezes, em animes e mangas, vemos uma figura muito bonita, de traços finos e delicados, cabelos compridos, lábios carnudos, suave e de movimentos calmos. Enquanto pensamos o quanto a rapariga é bonita e qual dos heróis provavelmente vai se apaixonar por ela, qual não é a nossa surpresa ao ouvi-la falar e… perceber que é um homem!
Quantas vezes eu não passamos por isso! A primeira vez que vi o Shun (Cavaleiros do Zodíaco), Kurama (Yu Yu Hakusho), Marron e Mirufu-yui (Bakuretsu Hunter), só para citar alguns, tinha certeza de que eram mulheres. Mas o inverso também é verdadeiro: vemos um rapazinho magro, de cabelos curtos e olhos grandes, expressão resoluta e movimentos rápidos e só mais tarde percebemos que… é uma mulher! Basta lembrarmos de Noa (Patlabor) ou Haruka (Sailor Moon S).
Se fosse só isso ainda estavamos bem, mas ainda temos mais como o caso dos que gostam de travesti? Homens que adoram vestir roupa de mulheres, como Olho de Peixe (Sailor Moon Super S), ou mulheres que preferem o conforto das roupas masculinas, como Haruka/Sailor Urano (Sailor Moon S), são relativamente comuns em mangas e animes, tanto que a gente passa a desconfiar de tudo e de todos.
Passado o “susto” inicial, logo nos adaptamos e pensamos: “bem, eles são assim mesmo, vamos desconsiderar o sexo e ver do que ele/ela é capaz”. Mas sempre fica aquela pergunta: o que é que há com esses japoneses malucos? Afinal, por que eles insistem em pôr esses personagens “esquisitos” nos mangas e animes? Será que tem tanto gay no Japão?
Primeiro precisamos de distinguir claramente três coisas que, embora muitas vezes andem juntas, não são iguais: androginia, homossexualismo e travestismo. Parece, mas não é…
Andrógino é uma pessoa que tem traços masculinos e femininos ao mesmo tempo, ou seja, é dificil dizer qual o sexo da pessoa. O conceito do andrógino existe desde os antigos gregos: uma lenda grega dizia que no início o ser humano era andrógino, nem homem, nem mulher. Depois, ele dividiu-se em duas metades, uma feminina e uma masculina. Porém, cada uma das partes agora estava incompleta, e passava toda a sua vida tentando achar a sua outra metade para voltarem ao estado de completude inicial. É daí que vem as expressões “cara metade” e “alma gêmea” e a ideia de que cada um de nós tem uma outra pessoa que nos completa.
Seiya Kou (Sailor Moon Stars) é um homem que fica mulher quando se transforma em Sailor. Ele com certeza já entrou em contacto com seu lado feminino!
O ser andrógino é, por isso, bastante intrigante: primeiro, não se sabe bem como ele/ela irá reagir, porque não parece estar ligado a nenhum dos dois “modelos básicos” de comportamento, masculino ou feminino. Depois, o andrógino (vamos usar o masculino, já que esta é a forma neutra em português) inspira imensa curiosidade: como será que ele é por baixo da roupa? Como se pode ser homem e mulher ao mesmo tempo? (se bem que aqui o caso é mais dos hermafroditas, seres que SÃO masculinos e femininos ao mesmo tempo. Actualmente, usamos o termo “andrógino” para uma pessoa que geralmente só PARECE ser ambos, mas “anatomicamente” é homem ou mulher). E em terceiro lugar, o andrógino atrai igualmente ambos os sexos e parece à vontade com ambos, podendo ficar tanto com homens como com mulheres sem realmente causar grande escândalo: afinal, ele pode ser uma coisa ou outra – ou nenhuma das duas, dependendo do que lhe convenha.
Fora todo esse mistério e fascinação, há várias outras razões para a grande presença de personagens andróginos em mangas e animes, e todas têm a ver com particularidades da cultura japonesa. Vamos ver algumas delas.
Refinamento e beleza
Na cultura japonesa, a beleza é fortemente associada a coisas pequenas, delicadas, finas e delgadas, calmas e suaves. Pensem no bambu, no papel de arroz, na cerâmica, nos olhos e boca minúsculos das gueixas, nas bonecas e miniaturas, nos arranjos de flores. Tudo o que é belo é calmo, pequeno e suave. Assim também as pessoas: o ideal de beleza clássica japonesa são as gueixas, que são “moldadas” para serem pessoas suaves e delicadas, e que correspondem mais ou menos à figura básica feminina no mundo todo. Não estou dizendo que o mundo todo espera que as mulheres sejam gueixas, mas sim que costumamos associar os traços de “bonito”, “pequeno”, “delicado”, “suave” à figura feminina.
Nos mangas e animes temos a possibilidade de “criar” pessoas idealizadas, exactamente do jeito que queremos (por isso muita gente emocionalmente “meio instável” parece só poder se apaixonar por “pessoas bidimensionais”, sejam elas as bonequinhas prontas para tudo das revistas hentai (pornográficas) japonesas ou as “panteras” do poster central da Playboy, só para citar os casos mais comuns). Desse modo, os personagens manga e anime são desenhados para encarnar as virtudes (ou vícios) mais importantes para o desenrolar da trama. Se a característica mais importante de um personagem é ser forte, ele pode ser desenhado dum modo mais rústico, como por exemplo, Goku em Dragonball. E se um personagem precisa ser refinado e belo, inspirar admiração e atração, ele geralmente é desenhado de acordo com o ideal de beleza japonesa – ou seja, com traços delicados que acabam se aproximando fortemente da imagem feminina e, consequentemente, tendem à androginia, como é o caso de Marron em Bakuretsu Hunters.
Papéis sociais: a força e a iniciativa
Do mesmo modo, a ideia de força, iniciativa, liderança e auto-suficiência tende a ser associada à figura masculina, principalmente no Japão, onde os papéis sociais de “homem” e “mulher” ainda são muito marcados. Devido a uma cultura milenar de segregação dos dois sexos, que praticamente não interagiam na sociedade, mulheres activas e com atitudes “agressivas” ainda causam um certo espanto – inclusive eu soube ultimamente que a revistinha da Mônica chegou a ser proibida no Japão há muitos anos atrás, provavelmente porque uma menina que sai batendo em meninos seria considerada “prejudicial à moral e aos bons costumes” (^_^ ). (Atenção: As histórias da Turma da Mônica não enfocam temas como homossexualismo ou travestismo, apenas a personagem foi usada aqui como exemplo de choque cultural!).
Mas mesmo a Mônica já mostra como as mulheres de génio forte e grande iniciativa tendem a apresentar “traços masculinos”, como cabelos curtos. O mesmo acontece nos mangas e animes: para acentuar a independência e a força de vários personagens femininos, bem para mostrar como elas são diferentes das “mulheres comuns”, os mangakas muitas vezes carregam nos traços comumente considerados masculinos, em especial o cabelo curto e uma expressão facial mais dura.
Marcas sociais: o vestuário e os cabelos
Embora haja alguns “sinais” que parecem ser universais no reconhecimento de um indivíduo como homem ou mulher (como já disse acima, fragilidade e delicadeza associadas às mulheres, força e agressividade associadas aos homens), cada grupo social marca (ou não) esses papéis através de diferentes coisas, entre elas, o vestuário.
Nas sociedades de fundo cultural cristão-europeu não há muitas diferenças no vestuário de países tão diversos como, por exemplo o Brasil e a Bolívia, o Canadá, a Itália e Portugal: temos especificações claras para quais roupas e penteados podem ser usados por homens e quais podem ser usados por mulheres no dia-a-dia: Os homens usam cabelos curtos e calças, compridas ou curtas, camisas ou camisetas, ternos ou jaquetas, sapatos de saltos baixos e não usam maquiagem. Actualmente está crescendo o uso de jóias e bijuterias, mas geralmente são pequenas e discretas; os brincos, quando são usados, geralmente são argolas, bolinhas ou pedrinhas bem pequenas, nunca pendentes grandes e nas duas orelhas. É claro que sempre há aqueles que fogem da “norma”, mas estes também são marcados socialmente.
A roupa “clássica” para as mulheres é a saia ou o vestido. Apesar do uso generalizado da calça comprida ou curta e camisa/camiseta/blusa para o dia-a-dia (quando, durante o trabalho, elas se igualam aos homens), é só ver como a maioria das mulheres “reverte” para o vestido quando há alguma festa ou solenidade, como um casamento, por exemplo. Quase que se espera que usem jóias bem aparentes, maquiagem e sapatos de salto alto (inclusive este é o “uniforme” de trabalho para muitas mulheres, dependendo das firmas ou dos cargos que ocupam). E para a grande maioria os cabelos compridos são a marca máxima da feminilidade.
Enquanto as mulheres passaram a adaptar e a usar a indumentária e o penteado masculino (já que elas passaram a trabalhar fora, o que antes era domínio exclusivo dos homens), vemos que, no dia-a-dia, não é aceitável que homens usem roupas consideradas femininas (mas pensem com que frequência – e naturalidade – isso acontece no Carnaval, quando as regras sociais são revogadas). As poucas tentativas de homens usarem saias no mundo ocidental ficaram restritas aos escoceses e a uns poucos artistas ou homens que querem marcar a sua posição à margem das regras sociais. Kamatari, de Rurouni Kenshin, diz que sempre se sentiu uma mulher e, assim, se veste como uma.
Assim, a ideia de “travestis”, ou seja, pessoas que usam roupas tradicionalmente associadas ao sexo oposto, está associada à marginalidade (que aliás pode ser bem ou mal vista, dependendo do seu apego aos valores sociais…). Isso não é exclusividade do Brasil ou da cultura européia, acontece em todos os grupos sociais. No entanto, quando temos casos de marcas sociais diferentes em encontros de culturas, pode haver dificuldades de entendimento.
No Japão, a roupa clássica tradicional era o kimono, que no fundo é… uma saia, e que era usado tanto por homens como por mulheres. É claro que há grandes diferenças entre os quimonos masculinos e femininos, mas o que eu quero dizer é que para um ocidental eles parecem sempre a mesma coisa: uma saia. Nas classes mais humildes, quando homens e mulheres precisavam trabalhar lado a lado (por exemplo, nas plantações de arroz), ambos os sexos usavam calças praticamente do mesmo modelo. Assim, vemos que no Japão não parece haver uma tradição tão arraigada de “saias para mulheres, calças para homens” como há na sociedade ocidental, e podemos imaginar que o fato de um homem usar saias não seja tão surpreendente para os japoneses como é para nós. Culturalmente, a moda ocidental poderia ser vista, pelos japoneses, como uma “fantasia” que usam quando querem assumir papéis nos moldes ocidentais, como na sociedade industrializada de hoje, mas que não precisa ser necessariamente utilizada com o mesmo valor das regras ocidentais.
Do mesmo modo que nossos homens usam saias no Carnaval e não ficariam envergonhados de usar quimonos num restaurante japonês, os personagens de mangás e animes não se sentem “pervertidos” ao usar as roupas do sexo oposto, seja por praticidade (como Haruka na imagem ao lado, o que nós consideramos normal, já que nossas mulheres também se vestem como homens), como artifício para conseguir o seu intento (como quando Zoicite se disfarça de Sailor Moon para atacar Tuxedo Mask ou Bado de Patlabor se disfarça de odalisca para fugir do país) ou simplesmente por “farra” (como Rubi Moon de Card Captor Sakura – que realmente é do sexo masculino, mas optou por usar o uniforme feminino da escola e saias porque “eram mais bonitas”). O mesmo vale para os cabelos, já que por muito tempo homens e mulheres no Japão usavam os cabelos compridos (embora houvesse diferenças no modo como eram penteados).
Escrito por: Selma Meireles