Nem tudo é o que parece…
Assim, muitos dos sinais que recebemos de personagens de mangas e animes são lidos, na nossa sociedade, como marcas de um comportamento social (e sexual) marginal. Esperamos dos homens que sejam “rudes”, “fortes” e descuidados na sua imagem pessoal, que tenham cabelos curtos, nunca usem saias ou maquiagem, que não se aproximem fisicamente de outros homens (a não ser na comemoração dos golos no futebol… (~_^) ) e que não mostrem seus sentimentos.
Das mulheres, esperamos que sejam belas e preocupadíssimas com a aparência e seus longos cabelos, que sejam frágeis e medrosas e que pensem o tempo todo em como conseguir um homem que as proteja. Quando encontramos personagens masculinos que apresentam cabelos compridos, traços delicados e comportamento sensível (como um símbolo de seu carácter) ou mulheres de cabelos curtos, traços fortes e comportamento agressivo (como marcas de sua determinação) ou personagens travestidos (seja lá porque razão), nós os identificamos imediatamente com o que esses sinais significam em nossa sociedade – homossexualismo – e com toda a carga negativa que esse conceito tem na sociedade cristã ocidental.
No entanto, embora muitas vezes essa impressão se confirme (porque nos mangas e animes HÁ personagens homossexuais, ao contrário da imensa maioria das obras correspondentes no ocidente), ela nem sempre é verdadeira: a grande maioria dos personagens andróginos é simplesmente… andrógina. Apenas sua aparência é “duvidosa”, como um reflexo de suas características mais importantes, sejam elas o bem estar do próximo (onde Shun abraça o Cisne para salvá-lo da morte por congelamento com o calor de seu corpo – com certeza a cena chocou muita gente, mas Shun não é gay – aliás, acho que ele nem sabe o que é sexo…), a preocupação egoísta com a aparência (como em Misty ou Aphrodite dos Cavaleiros), ou simplesmente por seu caráter mais reservado (como Kurama de Yu Yu Hakusho – apesar de Karasu ter “dado em cima” dele durante o torneio, não há nada que indique que Kurama teria gostado da atenção…).
No entanto, muitas vezes a suspeita de homossexualismo se confirma abertamente, para nossa surpresa e desespero dos censores e defensores da moral e dos bons costumes de plantão. No entanto, para entender melhor o porquê de personagens gays nos mangas e animes, vamos ver o porquê da AUSÊNCIA de tais personagens nos quadrinhos e desenhos animados ocidentais.
O peso da religião
Bem, porquê tanto medo do homossexualismo na sociedade ocidental? O homossexualismo é normalmente considerado um desvio, uma doença, uma perversão. O principal argumento para esse ponto de vista é o de que o sexo tem como função essencial a reprodução, assim, um par homossexual não estaria “cumprindo sua função biológica” e por isso deveria ser desencorajado. No entanto, pesquisas recentes sobre homossexualismo no mundo animal mostram que existem casais homossexuais estáveis em várias espécies e que criam seus filhotes muito bem (é claro que, para conceber os filhotes, é necessária a colaboração de um indivíduo do sexo oposto, que às vezes é inclusive integrado à família). Assim, essa teoria parece estar desmoronando.
Contudo, essa é a visão oficial e ferrenhamente defendida da Igreja cristã. O sexo é visto como “pecado” em qualquer forma que não seja a de gerar filhos em um casamento aprovado e sancionado pela dita Igreja. Até anticoncepcionais e outros meios de evitar filhos são muitas vezes totalmente repudiados: “se não quer filhos, não faça sexo”, parece ser o lema. No fundo, é isso mesmo. Mas e o que fazer quando se alia o sexo ao amor e/ou prazer? Não é possível criar todos os filhos que surgiriam desses encontros. E no caso de casais estéreis? Eles não deveriam fazer sexo? (Realmente, pela doutrina mais radical, um casamento não tem outra finalidade a não ser gerar filhos e, assim, tais casamentos podiam inclusive ser anulados, antigamente).
Bem, essa visão estreita do sexo (e que me desculpem os cristãos radicais, mas essa é MINHA opinião, não estou dizendo que ela é a certa ou a melhor, mas eu tenho direito a ela. Se não gosta do que está a ler, apenas procure uma outra página que lhe agrade mais. Um tabu é algo que existe, mas sobre o qual não se fala em público, não se discute e, principalmente, que se esconde ao máximo, para que a sua simples menção não “corrompa as mentes mais fracas”. É por isso que o homossexualismo simplesmente é banido de tudo o que tenha a ver com “crianças” nos meios de comunicação.
No entanto, outras sociedades não cristãs não têm esse preconceito tão enraizado. É claro que casais homossexuais não são bem vistos pelo facto de não gerarem filhos e, assim, não contribuírem com mais braços para trabalhar e pagar impostos, mas são mais bem tolerados que no ocidente. Inclusive eu li uma vez que, em algumas regiões da China antiga, havia casos oficiais de casamentos homossexuais masculinos, desde que eles mantivessem também uma “concubina” para que fossem gerados filhos. Sem a condenação radical da doutrina cristã, é fácil entender porque a sociedade oriental tem menos preconceito contra o homossexualismo.
A separação dos sexos
Além disso, nas sociedades onde há grande segregação dos sexos, o homossexualismo é naturalmente mais presente e, consequentemente, mais tolerado. Vejam o caso da Grécia Antiga: as mulheres ficavam fechadas nos aposentos femininos e poucas vezes se misturavam com os homens. Os homens, por sua vez, consideravam as mulheres apenas como “procriadoras”. A sociedade era realmente um privilégio dos homens e, consequentemente, o relacionamento homossexual masculino (note-se bem, masculino, já que a poetisa Safo da Ilha de Lesbos – de onde vem o termo “lésbica”- nunca foi bem vista por essa sociedade) era o padrão a ser atingido. Dizia-se inclusive que o único amor verdadeiro era o homossexual, pois o outro tinha apenas por finalidade gerar filhos! É incrível como nossa sociedade manteve o mito da perfeição da sociedade grega clássica como base para nosso pensamento, mas eliminou totalmente esse aspecto dos livros de história…
Bem, aqui o importante é mostrar que, assim como na Grécia Antiga, a sociedade japonesa tradicional também via a mulher apenas como uma procriadora e mantinha os dois sexos fortemente separados, o que favorecia as relações homossexuais, tanto entre homens como entre mulheres. De certo modo, essa “forte amizade” entre pessoas do mesmo sexo que vemos em muitos mangas e animes tem realmente um fundo “homossexual platônico” (como no caso de Tomoyo por Sakura em Card Captor Sakura), que não é assim tão mal visto na sociedade japonesa.
O mundo real
Estas duas razões são, na minha opinião, as mais fortes para explicar a presença constante de personagens homossexuais em mangás e animes. Mas podemos ainda apresentar mais duas:
A primeira é o facto de que mangas e animes procuram o mais possível a identificação com o leitor e com a sua realidade. Assim, como HÁ realmente homossexuais no mundo (apesar de muita gente não gostar do facto), eles TÊM de ser representados nas obras para que possam se identificar com elas. E mesmo os heterossexuais têm amigos ou conhecidos gays, e a sua presença nos mangas e animes apenas contribui para que eles reconheçam, nas obras, o mundo do qual fazem parte (inclusive com a presença, embora menos comuns, de casais de lésbicas, como em Sailor Moon S).
A segunda se refere ao grande “estilo” conhecido como shoujo, ou mangas e animes para garotas. A grande maioria dos autores e do público desse estilo são mulheres e aqui encontramos sempre muitos personagens gays ou andróginos. Haveria duas razões para isso: a primeira, como aponta Webmistress Lizzard no trecho citado mais abaixo, é que assim temos personagens masculinos lindos, mas inatingíveis. Isso define o seu status na trama, pois as mulheres podem interagir com eles mais livremente, sem o risco de um envolvimento amoroso, e cria maiores possibilidades dramáticas. A segunda razão seria uma possibilidade de identificação das leitoras com os personagens gays masculinos. Como já disse antes, a conduta esperada de uma mulher no Japão ainda é muito marcada pela passividade e fragilidade, o que inibe a presença de personagens femininos mais agressivos (lembrem da Mônica…). Assim, as leitoras poderiam “projetar-se” nos gays masculinos, o que lhes permitiria agir de modo mais activo e agressivo, inclusive na esfera sexual, mas manter os atributos da feminilidade e continuar atraídas por homens.
Seja qual for a razão, a presença frequente de personagens gays nos mangas e animes tem sempre influência sobre a trama e qualquer modificação dessa característica acaba desvirtuando a obra.
Intolerância
Bem, quem me vê falar assim deve pensar que eu sou gay. Sorry, folks, não sou. E estou declarando isso aqui porque muita gente acha que para ver o homossexualismo com tolerância é preciso ser gay também – outro preconceito absurdo. Realmente eu deveria ser contra os gays, já que eles aumentam a concorrência na caça a um marido (^_^), mas eu tenho o péssimo hábito de pensar nas pessoas primeiro como pessoas, e só depois como homens, mulheres, velhos, jovens, desta cultura ou de outra, etc. E assim, mesmo que eu não seja homossexual e não tenha vontade de ser, eu respeito aqueles que fizeram essa opção e, desde que eles existem, acho que devem ser integrados aos produtos da mídia com naturalidade. O que me deixa FURIOSA quando percebo que animes sofrem cortes terríveis ao serem exibidos na televisão ocidental ou, pior, são violentados brutalmente com a mudança de sexo ou a ocultação do relacionamento homossexual de alguns personagens, o que altera radicalmente a concepção original do artista e as relações nas quais se baseia a trama.
Felizmente, nesse departamento o Brasil ainda é mais “mente aberta” que muitos outros países. Nos EUA, por exemplo, a questão da (homo)sexualidade em animes é muito problemática, o que resulta na frequente mudança de sexo e na ocultação dos relacionamentos, como por exemplo, Bado em Patlabor e Zoicite e “Olho de Peixe” em Sailor Moon terem sido transformados em mulheres, o primeiro por parecer demais com uma garota, e os dois últimos porque eram abertamente gays (a versão brasileira seguiu a americana no caso de Zoicite e Bado, mas respeitou a “masculinidade” de Olho de Peixe).
Vou transcrever a seguir trechos do site In defense of Sailor Moon SuperS, onde temos uma visão incrivelmente clara do problema. Sobre o caso específico de Olho de Peixe, a autora, Webmistress Lizzard, diz:
“Olho de Peixe é realmente um homem. De facto, um homossexual masculino travestido – ou alguém que se diverte a vestir-se de menina de vez em quando.
Personagens gays, especialmente masculinos, são frequentes nos animes. Particularmente animes para meninas tendem a apresentar personagens gays lindos, mas inatingíveis. Isto não significa que a actividade sexual seja mostrada. Os personagens simplesmente são… assim. Às vezes isto é usado para adicionar dramaticidade ao enredo, às vezes para efeitos cómicos e às vezes é apenas uma característica do personagem, não mais ou menos importante que a cor do seu cabelo.
Apenas em Sailor Moon já há quatro personagens centrais gays – Zoicite [e, é claro, Malachite], Olho de Peixe, Sailors Urano e Netuno. Os tradutores estão tendo que rebolar para adaptar esses personagens para a televisão americana. Na dobragem, eles transformaram Urano e Netuno em primas. Zoicite, que tinha uma aparência mais delicada, foi transformado numa mulher. Quando a versão dobrada de Sailor Moon Super S foi transmitida, apostei que ia acontecer o mesmo com a personagem Olho de Peixe. E acertei.
Não é que a televisão japonesa seja extraordinariamente progressista. É que a televisão americana é extremamente conservadora. Homossexualismo na TV americana é mais ou menos limitado aos horários e programas para adultos. Poucas séries têm personagens gays, e aqueles que existem tendem a morrer antes do que deviam. Vejam só a série Ellen: foi cancelada não muito depois de a artista principal “sair do armário”. Foi por causa do Ibope? Foi por causa das reclamações dos espectadores? Foi por causa da opinião dos executivos televisivos que queriam distância da homossexualidade? Provavelmente um pouco de cada. Assim, não é de se admirar que a TV americana tenha medo de mostrar gays em desenhos animados.
Eu, pessoalmente, posso não achar a homossexualidade nojenta ou ofensiva, mas longe de mim dizer que a televisão americana não está fazendo o melhor que pode no clima cultural actual”
(Webmistress Lizzard, In defense of Sailor Moon S – debate. Minha tradução).
E agora?
Isto não acontece apenas nos EUA: por exemplo, Kurama também foi uma mulher nas Filipinas (coitado dele…). Não quero aqui falar mal da TV americana ou de qualquer outro país, apenas quis mostrar que a censura sobre assuntos ligados à sexualidade em animes existe e é bastante activa. É difícil dizer quando a linha da arte é ultrapassada e descamba para o mal-gosto ou para a “imoralidade”, ou o quanto características culturais podem ou precisam ser adaptadas quando seus produtos são mostrados a outras culturas. No entanto, vendo os animes em seu contexto original, sabemos que eles são dedicados a um público “familiar”, já que são exibidos na TV aberta.
Na minha opinião, a questão da homossexualidade é mostrada de um modo tão “leve” (mesmo a cena mais explícita que já vi até hoje, o beijo de Olho de Peixe em Darien), que as “crianças” não lhe dão tanta importância: apenas entendem que o personagem em questão é “meio estranho”, mas sem atribuição de valores. E quando alguém é “adulto” o bastante para perceber a questão sexual apresentada, bem, então já está mesmo na hora de pensar e discutir sobre o assunto. Cabe a cada um e aos seus pais ou responsáveis conversar sobre o tema do modo que mais lhe convém sob o ponto de vista de suas convicções, sejam elas quais forem.
O que eu não posso assistir passivamente é que “censores” roubem previamente a possibilidade do público de entrar em contato com outros pontos de vista, culturalmente diversos dos seus. Se a burka do mundo árabe nos incomoda tanto, por que não nos incomodamos com as manipulações da nossa liberdade de expressão e do acesso à informação?
Autor:Selma Meireles