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Cinderalla e Hansel & Gretel

Um dos problemas mais fascinantes na discussão das artes são as teorias dos géneros, isto é, de que forma elegemos certos princípios, características, elementos – usualmente fazendo distinções entre elementos “formais” e elementos “de fundo” ou “de conteúdo” – que permitem organizar textos, obras, exemplos dessas mesmas artes em categorizações. Isso apenas ajuda à História da Arte, à temporalização superficial desses mesmos textos e obras, enfim, a uma certa forma limitada de ver as coisas, ou de as organizar em colecções. É um autor tão importante como Walter Benjamin que alerta para o profundo abismo que separa a História de Arte de uma verdadeira problematização das artes que pode ser garantida pela Crítica, ou aproximações filosóficas das Artes. Onde um tenta arrumar, a crítica desarruma para tornar mais vivo.

Não é segredo nem inédito a ideia de que o século XX foi testemunha precisamente do fim das ainda possíveis categorizações e generalizações das artes. Se ainda se poderia, com Hegel, até meados ou quase fim do século XIX, falar de “formas adequadas”, de “equilíbrios entre a forma e o conteúdo”, o novo século – não obstante a tentativa, própria ou imposta de fora, de instituir “ismos” – veio colocar apenas dúvidas sobre a mesa. Dúvidas cujo objectivo não seria serem resolvidos mais tarde ou mais cedo, mas sim criar sempre, permanentemente, novos problemas sobre os anteriores.

Há óbvias diferenças entre a banda desenhada enquanto modo de expressão e outras artes, mais “antigas”. Precisamente porque a pintura (nem sempre a mais considerada das belas-artes), a escultura, a música, etc. Atravessando séculos de regras a priori de harmonia e equilíbrio, o choque provocado por artistas tão díspares como Debussy, Stravinsky, van Gogh, Duchamp, Moholy-Nagy, etc., foi bem mais sentido. A banda desenhada (e em certos aspectos o cinema e as outras futuras artes novas), uma vez que surgiu tardiamente, incorporou a surpresa da experimentação logo como condição da sua própria vida. Winsor McKay foi um experimentador exímio, mas o seu trabalho não surgiu como “choque” nem “corte”, precisamente porque a linguagem em desenvolvimento da sua arte aceitava essas inovações como regras intrínsecas do jogo.

Seja como for, as imposições técnicas e sobretudo as de mercado trariam a necessidade de criar “géneros”, ou textos cujas estruturas e temas fossem mais ou menos correspondentes às expectativas de um leitorado, e um vez que a sua esmagadora produção estava (e está) relacionada com um mercado de entretenimento de massas, não será surpreendente notar que a maioria das coisas são banalmente “genéricas”. É assim que se separa o trigo do joio, ou trabalhos verdadeiramente inovadores de simples epígonos de coisas já vistas e batidas, criações de banda desenhada de escaparate e verdadeiros autores. A felicidade contínua de um leitor crítico de banda desenhada está em descobrir autores que colocam tudo isso em suspenso, complicando as questões: McKay, Herriman, King, Tezuka, Barks, Crumb, Vaugh-James, Ware. E depois há aos autores que, mesmo não sendo (ainda?) esmagadores, ainda assim reservam surpresas e soluções interessantes e reveladoras de problemas ainda não resolvidos da linguagem desta arte: Mazzucchelli, Sikoryak, José Carlos Fernandes, Clowes, David B., Turunen. E Junko Mizuno.

Nascida em 1973, a carreira de Mizuno começou como a de desenhadora de characters, isto é, inventora gráfica de personagens cuja função era decorar certos produtos, para merchadinsing próprio ou alheio – neste caso particular, uma colecção de CDs, intitulados Pure Trance. Todos conhecerão outros exemplos, com a Hello Kitty em primeiríssimo lugar, mas onde se podem incluir a Pucca, a Emily, e a série Monsterism de Peter Fowley. Hoje, Mizuno é autora de uma dezena de livros de mangá e ilustração, design de produtos e a sua própria colecção de bonecos.

O que tornava apelativo a um largo público o trabalho de Mizuno era precisamente o de mistura de géneros: os seus desenhos partilhavam do cute ou kawaii, em japonês, condição sine qua non para o sucesso dessas personagens (as raparigas têm enormes olhos vidrados e não têm nariz ou é só um pontinho), do sexy (possuem enormes peitos róseos e cabeleiras fulvas), da moda mais hip (da melhor produção de Shinjuku), do grotesco (normalmente com chupa-chupas em forma de caveira na mão, ou a injectarem drogas inomináveis ou a vampirizar pobres e indefesos ursos)…

O próximo passo foi a da criação de mangás. A série com maior sucesso no Japão, e que lhe valeu atenção nos E.U.A. e na Europa – e rápidas traduções – foi a trilogia das adaptações de famosíssimos contos infantis: a Gata Borralheira com Cinderalla, a Pequena Sereia com Little Mermaid e Hansel & Gretel. A estrutura básica é idêntica, mas Mizuno muda o ambiente, os elementos, os detalhes, e até mesmo as raças – Cinderalla é uma espécie de zombie.

Os nossos olhos não se conseguem adaptar ao choque permanente do que nos surge como um desenho simples, de linhas suaves e cores vivas, no mais inócuo e anestesiante dos mundos publicitários, mas que retratam acções violentíssimas e abjectas: canibalismo, roubo de órgãos, drogas, sexo inter-espécies, vómitos, abusos sexuais, Sado-masoquismo, entre muitas outras perversidades divertidas. Se bem que já existissem outras autoras japonesas que trabalhavam as expectativas do que as mulheres “deveriam” fazer em termos de banda desenhada – penso em “Carol” Shimoda Emiko e Milk Morizono, por exemplo -, Mizuno leva essas expectativas a um grau mais forte, por um lado pelo desenvolvimento gráfico a que se permite, detalhado, com vinhetas construídas até aos mais pequenos pormenores, por outro pelas pequenas desconstruções que faz desses mitos modernos.

Este tema, da bd no feminino, infelizmente continua a ser alvo de discussão, como se não bastasse o trabalho de mulheres tão distintas como Julie Doucet, Jill Thompson, Marjane Satrapi, Alice Geirinhas e Isabel Carvalho, das contemporâneas, para desarrumar a loja…. Como não poderia deixar de ser e ainda bem, Junko Mizuno também contribui para essa baralhação.

Autor:Pedro Moura

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