Género especificamente japonês, as histórias de samurais podem ser consideradas como o equivalente japonês do Western americano. Uma comparação que está longe de ser desajustada, se nos lembrarmos que na origem de westerns clássicos como Os Sete Magníficos de John Sturges, ou Por um Punhado de Dolares de Sergio Leone, estão Os Sete Samurais e Yojimbo, dois filmes de samurais realizados pelo mestre Akira Kurosawa.
Mas, ao contrário do Western, cuja transposição para a BD foi feita com resultados muito mais interessantes na França do que no seu país de origem, e não obstante algumas (raras) excepções, como o Usagi Yojimbo de Stan Sakai, ou o Kogaratsu de Michetz, é no Japão que encontramos as grandes séries de samurais.
Kozure Okami, de Goseki Kojima e Kasuo Koike é uma dessas séries. Digna herdeira de uma tradição que atingiu o seu ponto mais alto com a obra de Sampei Shirato (Ninja Bugeicho e Kamui), autor que renovou um género quase moribundo desde o fim da 2ª Guerra Mundial, dirigindo-o para um público mais adulto, a série de Kojima e Koike, para além do estrondoso sucesso que conheceu no Japão, foi também o primeiro manga a ser editado nos Estados Unidos em formato comic book.
Tendo começado a ser publicadas em 1970, nas páginas da revista Manga Action, as aventuras de Ito Ogami, ex-executor oficial do Shogun, obrigado a vaguear pelo Japão como assassino de aluguer, acompanhado pelo seu filho, Daigoro, vão durar até 1976, enchendo 28 volumes de cerca de 300 páginas cada. Uma longa e violenta saga de um homem que abandonou tudo em busca de vingança do clã Yagyu, responsável pela sua queda e pela morte da sua mulher, contada em episódios autónomos relativamente curtos (entre 20 e 50 páginas) que nos vão gradualmente dando a conhecer algo mais do passado e personalidade de Ito Ogami, que com o seu filho Daigoro, escolheu a estrada do inferno, tornando-se um lobo solitário. Lone Wolf and Cub (o lobo solitário e a sua cria) é precisamente o título que foi dado à série no Ocidente, e que enfatiza a presença do pequeno Daigoro, um bébé com a força de vontade e a disciplina de um samurai adulto, que constitui o contraponto humano a uma história extremamente violenta, onde o sangue corre a jorros e os combates são tão rápidos como brutais.
O fabuloso sucesso desta longuíssima BD histórica (jidaimono) de quase 8.000 páginas, ambientada no Japão feudal do século XIX, e desenhada num estilo realista e extremamente fluído por Goseki Kojima, levou inevitavelmente à sua passagem para outros suportes, desde uma série de televisão, que transformou o mercenário Ito Ogami num justiceiro bem intencionado, até um conjunto de 6 longas metragens, que constituem a mais fiel adaptação cinematográfica de uma BD que alguma vez vi. Realizada entre 1972 e 1975, esta série de filmes, que contou com argumento do próprio Kazuo Koike, acompanhou a publicação do manga que adapta directamente, e fê-lo de uma forma tão exacta que dá ideia que o próprio manga deve ter funcionado como story-board.
Filmados numa época em que o sucesso do Western Spaguetti estava ainda bem fresco (Aconteceu no Oeste de Leone, é de 1969) estes filmes revelam claramente essa filiação estética, nos grandes planos do olhar dos personagens, no tratamento operático das cenas que antecedem os rápidos combates, e até na utilização da música. Kenji Misumi, o realizador dos 3 primeiros filmes era um admirador confesso de Kurosawa e de Leone, e essas influências notam-se nestes filmes que misturam uma violência extrema, com momentos de grande calmaria e beleza formal, quase poética.
Esses filmes chegariam ao Ocidente em 1982, graças aos produtores David Weisman e Robert Houston, numa versão truncada, chamada Shogun Assassin (que chegou a aparecer nos videoclubes portugueses) que mais não era que uma montagem sem grande coerência dos dois primeiros filmes da série, dobrada em inglês e narrada em voz off pelo pequeno Daigoro. Se este filme inspirou John Carpenter para alguns dos personagens de As Aventuras de Jack Burton, não foi suficiente para motivar a edição de Kozure Okami, o manga que está na origem de tudo.
Para isso foi necessário o empenho de Frank Miller, que descobriu a série na edição original japonesa e nela se inspirou largamente para o seu Ronin. Sendo esta uma das suas séries favoritas, Miller aproveitou a exposição pública conseguida com o sucesso de Dark Knight para divulgar a série e convencer a First Comics a editá-la nos EUA. Para essa edição em formato comic-book iniciada em 1987, Miller assegurou as capas e a introdução dos doze primeiros números, seguindo-se-lhe Bill Sienkiewicz, Matt Wagner e Michael Ploog. Mas devido aos problemas que levaram ao fecho da editora, a edição americana acabaria em 1991, no nº 44, deixando por publicar quase dois terços da série.
Desde então Lone Wolf and Cub não passava de um clássico desconhecido para as novas gerações de leitores, que descobriram os manga com Akira ou o Dragon Ball , uma grave lacuna que esta edição da Dark Horse veio remediar. Uma excelente edição, rigorosa e integral, num formato (minúsculo, mas que funciona muito bem, mal nos habituemos a ele) igual ao da edição japonesa, que dá a conhecer alguns episódios que tinham ficado de fora da edição da First devido ao seu conteúdo erótico, e que está a ter o devido sucesso. Um sucesso mais que merecido, pois para além de ser um marco na história do manga, Lone Wolf and Cub é claramente uma das grandes BDs do século XX.
(A série de manga é publicada mensalmente e encontra-se à venda nas livrarias especializadas, como a BdMania de Lisboa, a Interzona do Porto, e a Dr. Kartoon de Coimbra. Os 6 filmes foram lançados em video em 1999 pela Arts Magic (www.artsmagic.com), na sua colecção Warrior, numa versão legendada e em formato widescreen, com o título genérico de The Baby Cart Saga e podem ser facilmente encomendados através da Amazon).
* Este artigo foi publicado inicialmente na Revista Quadrado n.3 (III série).
Autor:João Miguel Lameiras