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MW

Sendo este livro da segunda metade da década de 1970, pertencerá àquele grupo de livros de Tezuka a que se dá o nome genérico de “da maturidade”, desejando assim apontar-se para uma diferenciação de grau das primeiras obras, grau relativo aos temas, em primeiro lugar, mas talvez também a algumas das estratégias visuais empregues, o modo como se desenvolvem as personagens, a complexidade da trama. Se for essa a perspectiva para com a maturidade, então, sim, MW inscrever-se-á nesse grupo, sem quaisquer dúvidas. No entanto, é necessário não perder de vista igualmente que esta é uma fase da carreira de Tezuka em que ele é já um autor consagrado, premiado, viajado e com inúmeros convites para vários projectos para além da mangá e do animé (inclusive de escultura), disciplinas nas quais continuava a trabalhar afincada e constantemente, graças ao seu cada vez mais consolidado estúdio (apesar das suas biografias encomiásticas gostarem sempre de sublinhar que grande parte do trabalho era feito pelo próprio Tezuka, especialmente nas bandas desenhadas). Ao mesmo tempo que esta obra, Tezuka desenvolvera Ode to Kihirito, mas também contribuíra com histórias curtas como “O rapaz da Chuva” ou as de personagens infanto-juvenis como o Rapaz dos Três Olhos, Black Jack e Unico. Esta menção serve somente para tornar claro que o trabalho de Tezuka era profissional, e movido provavelmente por uma constante preocupação em garantir uma presença em todos os públicos possíveis da banda desenhada no Japão.

Já havíamos também salientado o facto de que Tezuka, devido à emergência da gekigá, ter começado a investir parte da sua criatividade a títulos que fossem um pouco mais além do mero entretenimento infanto-juvenil a que o seu trabalho havia habituado o público, e que ainda hoje é a fonte de maior rendimento e fama, se bem que a recente tradução de obras mais complexas possa vir a inverter essa mesma imagem. No entanto, MW tem toda uma série de características que a diferencia da demais.
O livro é apontado como um “dos mais negros” de Tezuka, por mergulhar numa realidade sem condescendências para com a fantasia ou o maravilhoso, mas também por lidar com temas algo controversos. O título, “MW”, vem de um suposto gás venenoso empregue como arma militar por uma nação X – apesar de, mais tarde, os Estados Unidos serem indicados por nome noutras circunstâncias, será óbvio que esta misteriosa nação com a qual o Japão tem uma relação privilegiada, permitindo-lhe bases militares no seu território e garantindo-lhe protecção política é a América. Uma breve consulta dos problemas reais no Japão da época, com tensões permanentes (herdeiras dos anos 60) entre as facções de esquerda, a oposição à permanência dos Estados Unidos enquanto força militar e de pressão económica, os escândalos financeiros, e alguma actividade da direita (na qual Yukio Mishima teve um papel preponderante) serve como base de entendimento deste tipo de trabalho de Tezuka, que não lhe parece natural. Parte do livro centra-se num retrato pouco lisonjeiro da classe política, e chega-se mesmo a colocar em questão toda a relação de soberania do Japão (e dos seus representantes eleitos) face às obrigações lançadas pelos Estados Unidos. Desconheço se teria MW causado alguma celeuma então, transmitida numa publicação de grande circulação mas que visava um público-alvo de jovens adultos que talvez não estivessem directamente envolvidos em acções de cariz político, mas seja como for é inédito nos trabalhos de Tezuka uma abordagem tão directa de problemas inerentes ao seu Japão contemporâneo. Ao contrário das outras obras, onde sempre existe alguma nota de esperança ou de redenção no infinito, MW é uma tragédia em que o único possível “final feliz” apenas pode passar pela morte e destruição dos seus protagonistas; e mesmo assim, essa questão fica em suspenso.

A razão disso é que as personagens principais não poderiam ser mais atormentadas. Toda a trama se centra na relação de dois homens, Garai e Yuki Michio, que se conheceram numa pequena ilha, sendo o primeiro um membro de uma turma de delinquentes e o segundo uma criança que por ali passava. Por razões das circunstâncias, acabam por se encontrar numa gruta no alto da ilha quando parte do gás se liberta pela ilha, matando todas as pessoas que ali se encontravam. Garai e Yuki sobrevivem, mas não sem maleitas. Uma, derivada do gás: por uma qualquer razão, Yuki ingere uma quantidade mínima do gás que o afecta, tornando-o num psicopata implacável. Outra, mais profunda, é da descoberta da homossexualidade dos dois, uma relação carnal que se manteria ao longo dos anos. A história começa 16 anos depois destes acontecimentos, em que Garai é já um padre católico e Yuki um “sarariman” de sucesso. Aos poucos é que o plano se desvela, primeiro pensando nós que Yuki se move numa elaborada vingança contra os responsáveis militares e políticos do desastre com o MW, depois apercebendo-nos de que não é mais do que um simples plano de um demente.

Existem muitas outras dimensões em MW que talvez merecessem ser explorado, mas prendamo-nos, por ora, a um deles. O da representação da homossexualidade. Este é um território muito perigoso, que se sente que Tezuka não estaria completamente à vontade. Se por um lado bastas vezes nesta narrativa é indicado que a realidade dos homossexuais é aceite noutros países (ocidentais), Tezuka representa-os nestas duas personagens, um padre católico e um psicopata, ou outros no interior de um clube, onde se encontram travestis e orgias secretas. No fim, portanto, a imagem não é de todo positiva, mas sim a de homens (e mulheres) que não só têm de esconder essa sua faceta como ainda estabelecem redes suspeitas de influência e comportamentos de desbragamento moral. A defesa estará talvez no mesmo patamar da representação de pessoas de outras nações que não os japoneses, as mais das vezes atravessando graus variáveis de caricaturização e de preconceitos: a de que Tezuka era o primeiro a explorar estes assuntos. Mas isso não é defesa suficiente, e apenas o poderemos entender como passos primeiros que ligeiramente levavam para longe da ignorância total. Ainda hoje a homossexualidade masculina é tratada pelas shoju manga como matéria romântica, mas que nada tem a ver com os problemas tangíveis no Japão.

Curiosamente, é a relação entre o padre Garai e Yuki que traz uma das mais belas páginas de MW, numa utilização metafórica – isto é, que não exerce qualquer peso de realidade no interior da diegese – das ilustrações de Aubrey Beardsley, ligeiramente alterada para acomodar o rosto destas personagens. E uma vez que são retiradas de Salomé, talvez haja aqui um desejo de estabelecer algumas linhas de intertexualidade. O que não é de surpreender, já que Tezuka costuma sempre citar algumas das fontes que utiliza, integrando-as de uma forma mais ou menos subtil na própria história. Por exemplo, quando o padre Garai conta toda a história da população morta na ilha a um jornalista, este confessa-se surpreso mas compara esse relato a um romance de Jack Finney (conhecido pelo que daria origem a Invasion of the Body Snatchers), o que nos lança à ideia de Tezuka se ter parcialmente baseado nessa história para a criação de MW, revelando ao mesmo tempo a humildade e generosidade de Tezuka em tornar essas ligações o mais claras possíveis.

Apesar do tratamento superficial de algumas das questões apontadas, é necessário frisar que as personagens são tratadas de um modo que, para Tezuka, seriam bem mais profundas do que o habitual. Por exemplo, poderão entender como a crise interna, quase shakespeariana, que obriga o padre Garai a falar consigo próprio é tratada nesta página. No momento em que ele mesmo responde às suas questões, é quando o reflexo surge na superfície do vidro como se se tratasse de uma personagem outra, com a qual dialogasse. É uma estratégia visual-narrativa bastante simples, sem dúvida, mas extremamente efectiva para nos apercebermos dos problemas que dilaceram esta personagem, dividida entre um desejo (proibido por várias razões) e uma obrigação moral. É nestas questões de pensamento moral, as mais das vezes expressas por Garai, que MW toca perto de outros títulos como Apollo’s Song, Phoenix ou mesmo Buddha: questões como as de retribuição e de redenção, a da origem do mal e como este pode delir a potencialidade do homem para o bem, a tarefa que compartilhamos em relação ao esforço de aperfeiçoar o homem e, com ele, o mundo. Todavia, como se disse e se foi indicando com vários elementos, o fim de MW aponta para uma resposta quase niilista e que nos faz pensar que as ideias positivas de Tezuka se inscreviam no espaço das ficções de fantasia apenas; quando propõe um título estritamente realista, essas ideias dissipam-se quase totalmente, acabando encerradas no idealismo das suas personagens, mas não na da própria obra.

Autor: Pedro Vieira de Moura

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