«A cada um dos seus fantasmas», podemos ler a páginas tantas no monumental L’Ascension du Haut-Mal de David B. Mike Cartmell, numa discussão sobre filme experimental, ética e autobiografia, propõe que os fantasmas que nos assombram não são os fantasmas dos nossos antepassados – isto é, as almas transfiguradas e descarnadas do seu saco de pó – mas antes os seus segredos, que não poderemos desvendar. A imagem que perdura, que deve perdurar, portanto, é a de um indizível e intransmitido peso que se manterá na terra. E a cada um de nós, nos caberá o quinhão de fantasmas.
Shigeru Mizuki é um dos autores mais famosos de mangá e um dos responsáveis pelo seu recrudescimento nas décadas de 50 e 60, ao lado de Tezuka. Diferentemente de Tezuka, cuja força, exploração e sucesso lhe permitiram dedicar-se a todo um rol diverso de temas e estratégias, de públicos visados e de formas, Mizuki é associado acima de tudo a histórias que envolvem os yokai, palavra que aprendemos de imediato ao ler os seus livros: pequenas ou grandes “criaturas sobrenaturais que habitam o universo dos homens” (cito esta edição).
Dessas que pululam nos contos repescados por Lafcadio Hearn, repopulando o imaginário japonês, do qual algumas histórias de Hanawa Kazuichi e a A Viagem de Shihiro, de Miyazaki, são apenas avatares mais recentes e famosos fora do seu país. Essas criaturas também costumavam viver nos bosques e aldeias portuguesas, como os olhapins e os trasgos e os biobardos, mas somente as mouras encantadas e pouco mais parece terem sobrevivido, se tanto… É pela mangá e pelo anime que essas criaturas ganharam uma nova vida, uma nova presença, e se mantiveram “vivas”.
Há aqui um movimento duplo. Em primeiro lugar o de resgate e conservação de um imaginário que corria o risco de se perder, face à construção do novo Japão, não só moderno como modernista e sem tempo para um passado. É costume dizer-se, os turistas de todos os paladares, que o país que visitam e/ou que os fascina é feito de contradições. Qual o não é? A questão está em entender quais das contradições estarão em vigor, a exercer por assim dizer o seu poder nesse momento dado. Mizuki explora as do seu tempo e circunstância (as da sua primeira adolescência, formação de aptidões, crescimento interno). A outra face desse movimento é futura, a busca por um certo grau de espiritualidade. Poderá ser chã ou xamânica, mas por isso mesmo mais humana, de fé no propriamente humano, e não uma delegação no portentoso. Um sobrenatural que pende mais para o natural (no homem) do que no sobre-. Tezuka também partilha em alguns dos seus títulos essa vontade moralizante (num sentido positivo, construtivo, repito, espiritual, do termo), em Fénix ou em Demain les oiseaux.
Em Nonnonbâ, pela mão do autor-protagonista, vemos o seu mundo infantil a desfazer-se quer pelo seu crescimento individual, quer pelas relações que tem com os seus familiares e amigos, quer ainda pelas histórias contadas pela velhota que dá título ao livro, uma enciclopédia viva do sobrenatural local, sobretudo os yokai. Aos poucos, Shigéru vai familiarizando-se com alguns desses yokai, até mesmo chegar a tomar banho com um! Não nutre propriamente amizade com eles, mas antes uma estranha cumplicidade de aprendizagem. Essas criaturas mostram-se tão sábias como nenhuma outra personagem em seu torno. Isso lança Shigéru num mundo de fronteira, entre o mundo natural e o sobrenatural, entre a vigília e o sonho, até as dúvidas se imiscuírem durante o mais banal dos seus actos. No fundo, é isso o que Shigeru Mizuki, o autor, nos quer dar a entender. Não é uma questão de crença – se bem que talvez se ela existir, mal não trará – mas sim de disponibilidade em escutar e aprender as lições possíveis de experiências diferentes.
A nova família que se vê a mudar para a sua aldeia é uma representação do movimento contrário, a arrogância dos forasteiros iluminados pela ciência menosprezando o modo de vida que até ali vingara no local que agora ocupam. Mais, o crime deles ganha contornos horrorosos, se bem que mitigados pelo fora de cena. O preço é esperado.
Tal como os círculos infernais em Dante ou noutras tradições menos canónicas do Cristianismo, também no entendimento da vida para além da morte da China, do Japão e da Coreia se reservam “as nove terras da serenidade” para aqueles que merecem um castigo pelos pecados feitos na Terra. Se bem que no Shintoísmo a ideia de “pecado” não possa ser de forma alguma encontrada, no Cristianismo ser conjuntamente com a “culpa” o peso máximo do crente, e no Budismo existirem ecos semelhantes, no Japão todas estas ideias se confundem sobretudo quando se encontram na ficção. Mizuki explora-a essa realidade para criar efeitos de grandes pequenas comoções, como a morte de Chigusa, os medos tornados palpáveis em vários pontos da narrativa, o castigo da família forasteira, ou noutras histórias anteriores, sobretudo na sua famosa série (tornada também série de animação) Ge Ge Ge no Kitaro. Esses círculos podem também se abrir a ambientes mais festivos, de convívio, como este exemplo da imagem.
A pequenina Miwa, como explica Nonnonbâ, desconhece o mundo e por isso vive mais perto da natureza. Se bem que a discussão e rivalidade eterna entre a natureza e educação seja uma realidade que aos poucos se vai ultrapassando, ela não deixa de ainda fazer sentido. Fôssemos nós mais sujeitos à naturalidade, mesmo na sociedade e na cultura, evitaríamos preconceitos ridículos. Como por exemplo, que a banda desenhada não nos deixa pensar, que só serve para isto ou aquilo, que a mangá toda não presta porque é “industrial”. Para se ser verdadeiramente adulto, um público adulto, é preciso não se fingir ser adulto através de uma grossa patina de seriedade e erudição, mas sê-lo com a abertura possível. Só passeando com os dedos e os olhos e os corações sobre estas obras se descobrirá uma verdade, e o ter dado esse passeio já é meio-caminho andado para entrar nessoutra natureza.
Autor: Pedro Vieira Moura