Toda a gente conhece os manga japoneses, mas poucos saberão qual a mais popular série de manga de sempre no próprio Japão. Ora, é interessante verificar que tal série não partilha muitas das características que estamos habituados a ver nas manga: superpoderes, cenários futuristas, samurais ou vampiros. O próprio traço do desenho não se assemelha de todo ao daquelas figuras estilizadas de cabelos esvoaçantes e grandes olhos inexpressivos que povoam os livros de manga que se encontram à venda em todo o mundo.
Encontramos uma família típica do Japão destroçado do pós-guerra. A heroína é uma mulher jovem e estouvada chamada Sazae. É ela que dá o nome à série, “Sazae-san”. Provavelmente, não há japonês nenhum que não conheça “Sazae-san”, a menos que não tenha ainda idade para isso. Além do conteúdo ser inesperado para nós, ocidentais, o facto de a autora ser, tal como a heroína, uma mulher, foi algo inesperado para os próprios japoneses. Hoje em dia, existem muitíssimas autoras de manga no Japão mas, na primeira metade do séc. XX, a maioria das japonesas estava ainda destinada a ser filha, esposa, mãe, sogra e pouco mais.
As primeiras tiras de “Sazae-san” apareceram publicadas no jornal diário “Yukan Funichi” de Fukuoka, na ilha de Kyushu, em Abril de 1946, ou seja, quase um ano após as bombas de Hiroshima e Nagasaki. A autora chamava-se Machiko Hasegawa ou, mais correctamente, Hasegawa Machiko. Hasegawa é o sobrenome e Machiko o nome próprio. No Japão, tal como na China, o sobrenome surge em primeiro lugar. No entanto, costuma mudar-se essa ordem quando se escreve numa língua ocidental. Hasegawa Machiko nascera a 30 de Janeiro de 1920.
Natural de Taku, no distrito de Saga, na ilha de Kyushu, Machiko tinha duas irmãs, um pai engenheiro muito devotado às filhas e a mãe, dona de casa. A família mudou-se para Tóquio quando Machiko tinha apenas doze anos, devido à morte do pai. Com quinze anos, ainda aluna de liceu, Machiko começou a sua carreira de desenhadora. Aos dezasseis, tornou-se aprendiz de Suiho Tagawa (1899-1989), considerado o maior autor de B.D. da época anterior à Segunda Grande Guerra e criador da série “Norakuro”
(1933-35), acerca de um cãozinho que se alistava no Exército Imperial. Mas a rapariga depressa começou a forjar o seu próprio caminho. Um dia em que caminhava pela praia com uma das irmãs, surgiu-lhe a ideia para a série que havia de torná-la rica e famosa – “Sazae-san”. Devido talvez ao local, os nomes das personagens são também os de vários frutos do mar. Por exemplo, Sazae significa rodovalho, Kazuo,
nome do irmão de Sazae, significa bonito seco (uma espécie de atum, utilizado no okonomiyaki), Wakame, nome da irmãzinha, é também o de uma alga usada na confecção da sopa miso e Tarao (Tara), o filho de Sazae, partilha o nome com o bacalhau.
A série começou, desde 1949, a ser publicada diariamente no conhecido jornal Asahi Shinbum e assim continuaria por mais 28 anos, até Fevereiro de 1974, perfazendo um total de 6 477 capítulos. Cada um destes consiste num relato curto e independente.
O êxito foi instantâneo. Os japoneses do pós-guerra e das gerações posteriores identificavam-se de imediato com aquela família da classe média e com as situações cómicas mas banais que protagonizavam.
“Sazae-san” debruça-se sobre a vida quotidiana de uma família alargada vulgar (três gerações na mesma casa), os Isono. O destaque vai para a filha mais velha, Sazae, mas há ainda o pai, Namihei, a mãe Fune, o irmão Kazuo e a irmã Wakame, assim como aquele que, pouco tempo depois de criada a série, se torna no marido de Sazae, Fuguta Masuo, e o filhito de ambos, Tarao.
Os Isono começam por viver em Kyushu mas mudam-se rapidamente para Tóquio. Machiko Hasegawa viveu muito tempo no bairro Setagaya da capital, e fez com que a maioria das cenas da série também tivesse ali lugar. Por essa razão, uma das ruas do bairro, até então chamada Naka-dori, tomou o nome de Rua Sazae-san em 1987. Hasegawa Machiko frente a um desenho com o rosto de Sazae Como é comum na banda desenhada, na série “Sazae-san” os tempos vão passando e a sociedade mudando, mas as personagens conservam sempre a mesma idade. O conteúdo é apropriado para famílias e pouco controverso. Trata-se de um tipo de humor que não provoca gargalhadas, antes origina um sorriso permanente e boa disposição para o resto do dia. Aborda situações familiares a muitos de nós, como proferir inconveniências diante de visitas ou pregar partidas para se conseguir ficar com a guloseima da irmã.
A jovem Sazae não possui super-poderes, tem um QI vulgar, é fisicamente prosaica e não prima pelo bom-gosto. Mas o leitor começa logo a render-se à sua alegria, ao seu sentido de humor, à sua natureza distraída, ao seu bom coração, modos arrapazados (por causa deles, a mãe receava que nunca viesse a arranjar marido), gaffes e, por vezes, espalhafato. A maneira estouvada como Sazae lida com as adversidades do pós-guerra (a falta de alimentos, as senhas de racionamento, a pobreza, os órfãos de guerra, mas também as novas ideias e atitudes trazidas pelos ocupantes americanos) ofereceu aos japoneses de então um certo sentimento de conforto e ajudou-os a superar essas adversidades com um sorriso.
O pai de Sazae-san, como é típico dos homens japoneses, pouco faz em casa. Mas é afável e atencioso, muito diferente do pai japonês tirânico da época anterior à guerra:
“Há três coisas a temer na vida: os terramotos, os incêndios e o pai”, era então um dito popular. Em “Sazae-san”, janta-se às seis em família, seguindo o costume tradicional. A disposição à mesa também é tradicional – no lugar de honra sentam-se os homens: o pai e o marido. Sazae e a mãe sentam-se do lado mais próximo da cozinha, porque lhes cabe a elas servir os pratos. Mas a atmosfera é descontraída e partilham todos os mesmos alimentos simples, não ficando reservados aos homens as melhores iguarias, como acontecia antes da Guerra. A tradição ditava ainda que fosse a noiva a ir viver com a família do marido. No entanto, é o marido de Sazae que vai viver para casa dela. “Sazae-san” não ajudou apenas os japoneses a suportarem as agruras da época do pósguerra; ajudou-os também a promover no país uma maior igualdade entre homens e mulheres, quando o peso da mentalidade tradicional era ainda muito importante.
A mistura do tradicional e do moderno, tão característica do Japão, também é visível através das roupas: os pais preferem quimonos, as gerações mais novas adoptam trajes ocidentais. E assim prosseguiu Sazae-san pelos anos cinquenta e sessenta adiante, cada vez mais feminista e alegre, vestindo já calças à boca-de-sino e até mini-saia.
A série manteve-se sempre tão popular que foi editada numa colecção de 68 livros, conquistou a rádio nos anos cinquenta, o grande écran com nove filmes de sucesso e acabou a passar na televisão em desenhos animados desde 1966 até aos nossos dias! Machiko Hasegawa, todavia, desaprovava os desenhos animados, tendo comentado: “A série Sazae-san emitida agora na televisão difere tanto da minha Sazae-san que não tenho nada a ver com ela.” Talvez assim fosse porque os desenhos animados serviam de veículo publicitário para vários patrocinadores e qualquer episódio mais satírico ou com um humor um pouco mais negro era recusado.
Quanto à edição japonesa dos livros de “Sazae-san”, publicada pela editora Shimaisha (“Irmãs”, dirigida pela própria Machiko Hasegawa e irmãs) e pela Asahi Shinbum, já vendeu mais de 86 milhões de exemplares.
Em 1974, Hasegawa resolveu terminar a série. A forma de vida retratada na obra – comunidades agradáveis de famílias vizinhas, com costumes frugais, praticando a entreajuda e gozando de tranquilidade – tinha-se praticamente extinguido na Tóquio da alta tecnologia, do ritmo de vida acelerado, do consumo desenfreado e das famílias nucleares. No entanto, a série continua a atrair o povo japonês, nostálgico dessa vida de outrora, e também os ocidentais que anseiam por entender a história do Japão do séc. XX.
A desenhadora, que nunca se casou nem teve filhos, dedicou-se depois a consolidar o êxito da sua maior obra. A 3 de Novembro de 1985, com a irmã Mariko, abriu no seu bairro (e das suas personagens), Setagaya, a sete minutos a pé da estação de Sakurashinmachi da linha Tokyu Shin-Tamagawa do Metro, o Museu Hasegawa Machiko, onde se pode contemplar, além dos desenhos originais da série e demais trabalhos da autora, a colecção de arte das irmãs, com obras de Chagall, entre outros pintores de renome.
Hasegawa Machiko morreu em 1992, após ter reinado durante cinquenta anos, numa sociedade onde a BD desempenha um papel de enorme relevância, representando a cultura popular e a mentalidade japonesa do pós-guerra. No ano da sua morte, foi-lhe dado um prémio, infelizmente póstumo, pelo então Primeiro-Ministro.
Ao longo dos tempos, a série “Sazae-san” levantou questões e dúvidas nos seus leitores. No intuito de as tentar esclarecer, o professor Kenkichiro Iwamatsu, da prestigiosa Universidade Keio Gijuku e dirigente da Associação de Sazae de Tóquio, publicou em 1992 um livro intitulado “Os 69 Mistérios Escondidos em Sazae-san”. Até hoje, vendeu mais de dois milhões de exemplares. “Sazae-san” é tão representativa da cultura japonesa e da vida das três décadas que se seguiram à Segunda Grande Guerra, que apenas em 1997, cinco anos após a morte da autora, se aventuraram a traduzi-la para
inglês, sob o título “The Wonderful World of Sazae-san”.
Curiosamente, “The Wonderful World of Sazae-san” viria a revelar ser uma leitura igualmente apaixonante para os ocidentais. Isso sucede porque se trata de um bom meio para entender a vida e cultura japonesas. É também uma óptima maneira para se começar a ler em japonês, uma vez que os diálogos são curtos e simples. Além disso, apesar das idiossincrasias da vida japonesa (o que só torna a série mais atraente), o leitor ocidental, tal como o nipónico, adere de imediato a “Sazae-san” porque encontra nela uma ressonância da vida simples do dia-a-dia, vida essa que se assemelha por toda a parte e está recheada de situações cómicas que oferecem muitas razões para ser feliz.
Escrito por: Cláudia Ribeiro