tradução francesa reúne em três volumes o que penso ser a vida longa, 10 anos, da série “Ryota no Mandala”, sendo Ryota o nome do protagonista, um jovem de dezasseis anos (e que envelhece com o progresso “natural” dos episódios) e Mandala o nome da pensão termal onde vive e trabalha (pertença da sua mãe).
Tratando-se de uma série cuja vida original se estendeu de 1979 pelos anos 80 no Japão, há porém uma qualquer patina que se desprende de toda a obra que faz pensar num tom nostálgico, que poderá ter a ver com a adolescência do próprio autor, ou com um certa apetência para um imaginário patente na ficção japonesa da época (no cinema, na literatura, e para além dela). Esse aspecto pode ser ilustrado com uma das facetas de Jun Hatanaka, que é a de cultor da xilogravura, um acto que, só por si, revelará um interesse e uma entrega a um modo de criação, não tanto obsoleto – comentário apenas possível naqueles que são cegos pelo fulgor do “novo” – mas aberto a uma rememoração de gestos menos habituais. É como se Hatanaka escrevesse no presente sempre olhando para o passado por cima do ombro.
O passado não pode ser olhado olhando para trás rodando todo o corpo, pois assim passaríamos a estar de novo voltados para o futuro (que é, na nossa cultura, o que está em frente dos nossos rostos e olhar), mas antes olhado com alguma dificuldade para trás. Porém, é esta mesma dificuldade, até física, que torna claro o paradoxo de olhar para o passado e tentar falar dele por meio de uma obra (ficcional ou não, de arte ou menos), daquilo que, de certa forma, Walter Benjamin cristalizou na imagem de “olhar por um telescópio o passado através do presente” (é difícil traduzir esta imagem em conceitos claros, mas trata-se de fazer convergir num espaço todo um movimento, de condensar elementos numa só figura, de manter à distância aquilo que trazemos para perto de nós).
Os volumes são compostos por histórias curtas, episódios que têm como centro acontecimentos que não se relacionam entre si, tornando-os portanto independentes uns dos outros. Mas ao mesmo tempo existem aspectos recorrentes, que não têm simplesmente a ver com temas repetidos ou traços das personalidades das suas personagens revisitados, mas antes com um movimento espiralado, vestígios que se revisitam para a cada vez se tornarem mais claros ou mais complexos, fazendo emergir, no final, uma imagem compósita com todos esses elementos. Mais uma vez, é uma imitação do modo como a memória funciona, apesar de não existir qualquer indício directo ou extra-textual que o indique: trata-se de uma impressão criada por esse ritmo.
Na verdade, há um tema óbvio tratado em cada episódio da vida de Ryota: o despertar para a vida sexual dos adolescentes, não só o próprio Ryota, como a dos seus amigos mais próximos e a das raparigas que vão surgindo, tocando tangencialmente a de todos os outros intervenientes. As estâncias termais no Japão são classicamente consideradas um local de deboche e oportunidades sexuais. O conceito de “pecado” é inexistente na cultural japonesa, e a prostituição, apesar de ser uma figura jurídica ilegal, toma muitas formas aceites de um modo quase natural (quer dizer, sem estranheza) naquela sociedade. A existência de “serviços extra” num local destes – anos antes do desenvolvimento das soaplands – era não apenas esperada, como parte integrante.
A estância Mandala tenta ser “limpa”, mas testemunhamos os momentos em que nem sempre isso é possível, e quando por vezes se verifica mesmo a conivência de todos os seus membros. Por exemplo, a mãe de Ryota por várias ocasiões sabe dos comportamentos do filho, que inclui espreitar as mulheres no banho, masturbar-se num local mais privado ou mais público, fazer sexo com várias mulheres… Isso não constitui um choque para a mãe, como o seria, talvez, nas nossas sociedades sob a sombra do pecado, e é matéria de interesse de contraste cultural. Quase todos os aspectos relacionados com a esfera sexual, nestas histórias, inclusive o humor, sublinham as diferenças culturais entre esta cultura particular e a nossa, mas é aí que reside a transformação desta histórias num palco de aprendizagem efectivo.
O humor de Jun Hatanaka vive portanto deste círculo de referências, piadas por vezes de mau gosto, ou de um gosto fácil, mas a obra ganha uma dimensão mais forte e acabada graças aos ângulos mais humanos que coloca em torno destes acontecimentos.
Ryota du Mandala acaba por se tornar uma espécie de retrato da vida campesina ou montanhesa destas personagens, numa época em que a estandardização da cultura japonesa ainda não estava efectivada, em que toda uma série de estereótipos culturais por vir ainda se estavam formando e havia a possibilidade de uma procura por um espaço próprio, em que a mobilidade social era ainda possível, desejada e experimentada graças a abertura social e económica que começava a ganhar forma. Testemunhamos também os momentos de lazer e de confronto destas personagens com a vida mais urbana, das metrópoles em crescimento, quando eles “descem à cidade”. Vemos uma procissão de funções sociais e de personagens que, sendo personagens-tipo, ganham direito a um ou dois momentos de se tornaram verdadeiras personalidades (como o professor de Matemática, ou um criminoso que retorna para poder ver as filhas, ou uma jovem que fugira e se redime na vila que a viu nascer).
Esse tratamento paradoxal tem também a sua dimensão e dinâmica visual, no tratamento quase ideogramático das personagens principais, especialmente os homens ou as personagens mais velhas, e uma opção por uma estilização estereotipada das raparigas jovens, por um lado objectificando-as, sem dúvida, mas por outro sublinhando assim a sua capacidade de fascínio (nada que não houvesse sido tentado antes, mesmo na banda desenhada ocidental, bastando recordar as “Gibson girls”, ou o tratamento análogo por George McManus, muito influente no Japão na emergência da mangá moderna, ou Cliff Sterrett).
E há ainda momentos em que o autor se permite a inclusão de intervalos idílicos, graças à representação de um passeio, um piquenique, uma curta viagem, entregando-se a parcelares apresentação da natureza que rodeia a pensão Mandala, trazendo os exercícios clássicos das paisagens nas quatro estações para o interior destas pequenas narrativas.
Há, então, duas formas de lermos estes livros. Ou a de nos centrarmos somente nas escapadas e piadas em torno do sexo, que se repete e esgota a partir de certo ponto. Ou a de permitirmo-nos descobrir essas outras menos imediatas dimensões das histórias, que por sua vez as iluminam e as transfiguram em momentos de memórias nossas, mesmo que as não sejam.
Autor: Pedro Vieira de Moura