Num momento em que, no hemisfério ocidental, se verifica entre certos sectores da população um crescente sentimento de desconfiança face às capacidades da ciência e da tecnologia, o Japão permanece como um baluarte de disseminação e popularização dos mais recentes desenvolvimentos das mais diversas áreas científicas. O caso de amor entre os japoneses e a tecnologia é óbvio e visível nos conteúdos das obras de anime e manga que nos chegam de terras do sol nascente, com grande ênfase nos mechas e na ficção científica. Entre os nipónicos, o cientista ainda é visto como uma personalidade nobre e interessada no bem e na prosperidade da humanidade, ao contrário da nova tendência americana para ver a comunidade científica como tendo a sua integridade ética corrompida por interesses corporativos.
Em “Spirit of Wonder”, uma obra de 1997 da autoria de Tsuruta Kenji, o espírito científico é não só algo que contribui para o desenvolvimento da humanidade, mas um instrumento de desenvolvimento pessoal, uma ferramenta para atingir sonhos e concretizar projectos.
O volume de 400 páginas compila uma série de histórias curtas, todas as quais têm pelo menos 3 elementos comuns: uma mulher bonita e voluntariosa, um inventor excêntrico com um nome complicado, e uma invenção ou descoberta científica extraordinária. Muitos dos personagens surgem em mais do que uma história, sendo que a segunda metade da obra é toda ela dedicada aos personagens que celebrizaram este título: a admirável Miss China, o Professor Breckenridge e o seu assistente Jim Floyd. Desde tesouros subaquáticos até viagens espaciais em dirigíveis solares, é uma viagem alucinante por mundos que poderiam, e talvez ainda poderão ser.
A parte mais importante de “Spirit of Wonder” – as aventuras de Miss China – mereceu uma adaptação para anime devido à sua grande popularidade. Neste cenário é contada a história de Miss China, a jovem dona de um restaurante chinês numa cidade costeira inglesa. No segundo piso das instalações, reside e trabalha o Prof. Breckenridge, um instável e algo tarado inventor, obcecado pela idéia de visitar a Lua. Ele é acompanhado do seu ajudante, Jim Floyd, um jovem brilhante pelo qual China nutre uma afecção muito especial.
Ela ver-se-á envolvida de uma forma muito particular na experiência do meio de locomoção idealizado pelo professor: um aparelho capaz de reproduzir uma área espacial dentro de uma outra, à escala. Apesar de estranha, esta idéia oferecerá a Jim e a China a oportunidade de definitivamente revelarem os seus sentimentos, tornando-se a ciência numa espécie de catalizador do amor.
Tsuruta Kenji, além de conceder a estes relatos um encanto inigualável, ilustra-os com uma arte admirável, um estilo muito próprio e extremamente detalhado, mas ao qual não falta um toque de humor quando tal é apropriado. Se bem que o autor descambe um pouco nos estereótipos da menina bonita (mas nunca inofensiva) e do cientista lunático, mercê da repetição temática dos contos, cada um dos seus personagens possui um encanto próprio muito acentuado. Apesar de no início revelar uma certa hesitação na estruturação narrativa, omitindo pormenores e acções importantes, na altura em que chega à história de Miss China já adquiriu um ritmo agradável e uma boa claridade na acção, contribuindo assim ainda mais para a apreciação desta fase – de tal forma que foi ela a escolhida para adaptação a animação, e é ainda de notar que a saga de Miss China foi a única parte desta obra publicada nos Estados Unidos pela Dark Horse (se bem que a edição francesa seja integral).
É interessante reparar que o ambiente de cada um dos contos é constante e um pouco anacrónico – correspondendo à primeira metade do século XX, denunciado pelo vestuário dos personagens e pela arquitectura. Contudo, a tecnologia é totalmente desfasada cronologicamente desta era, fazendo lembrar, pelo seu enquadramento, as obras de Júlio Verne (como “20.000 Léguas Submarinas” ou “Da Terra à Lua”) ou H.G.Wells (“A Máquina do Tempo”). A promoção do espírito científico é, também ela, feita num teor semelhante ao destes dois gigantes da literatura de ficção científica.
Se bem que as descobertas científicas do nosso tempo já não sejam feitas por visionários solitários em laboratórios remotos, mas sim por equipas de trabalho rigorosamente organizadas e com orçamentos de milhões, “Spirit of Wonder” continua a ter a capacidade de inspirar todos quantos o lêm para aquilo que a ciência pode ser: mais do que uma acumulação de conhecimentos, um desenrolar de concretizações de sonhos. Mais do que chegar mais além, mehorar-nos a nós próprios e àquilo que nos rodeia. Mesmo que este livro não tivesse a arte excelente e a narrativa cativante que tem, só isto já justificaria a sua leitura.
Escrito por:João Rocha