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Eleki – Parte I

Ao longo dos últimos anos, o país do sol nascente tem oferecido ao ocidente «bárbaro» alguma da música psicadélica mais inovadora, criativa e experimental jamais congeminada, fruto de uma obsessiva e metódica exploração da matéria sonora. O Japão teve, sem sombra de dúvidas, um papel significativo na revitalização do género, e grupos como Acid Mothers Temple, Kousokuya, Ghost, Suishou No Fune, Maher Shalal Hash Baz, ou indiíduos como Kawabata Makoto, Keiji Haino, Kan Mikami, Jutok Kaneko, e Asahito Nanjo, para nomear apenas alguns, são hoje lugares-comuns quando se fala de música psicadélica num mundo globalizado, onde a Internet permite o fácil acesso a música dos quatro cantos de mundo.

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Mas esta contribuição não deixa de criar alguma perplexidade para aqueles mais informados quanto às posições conservadoras em relação ao consumo de substâncias do governo japonês, da população em geral, e mesmo de algumas das figuras de proa do movimento psicadélico nipónico. É que enquanto a música psicadélica ocidental se encontra indelevelmente associada ao consumo de drogas e a estados alterados de consciência, no oriente as coisas foram e são um pouco diferentes. Os músicos japoneses procuram essencialmente criar e produzir música que tenha um efeito no ouvinte semelhante áquele induzido por psicotrópicos, e para atingir este fim o composto musical tem vindo a ser refinado ao longo dos tempos e das gerações, razão pela qual será legítimo perguntarmos “mas afinal onde é que tudo começou?”.

A história da música psicadélica no Japão encontra-se intimamente conectada a dois elementos basilares: a ocidentalização decorrente do período de ocupação pelas forças armadas americanas e o “milagre” económico operado no pós-guerra, bastante semelhante ao wirstschaftswunder alemão. As novas gerações japonesas ansiosas por experimentar um novo mundo trazido na bagagem pelos soldados do novo mundo, acolheram o rock’n’roll de braços abertos, mas inflamados pela sua idiossincrática cultura milenar, fundada em séculos de isolação auto-imposta, assimilaram, metabolizaram e expeliram dois novos géneros que, embora tendo raízes ocidentais, são na sua essência japoneses: o “eleki” e o “group sounds”.

Se bem que a maior parte dos músicos contemporâneos supracitados descarte ambos os fenómenos como irrelevantes e perfeitamente descartáveis, em consonância com ambiente consumista e superficial em que floresceram, quando o espectro de análise é reduzido à cultura popular e de massas, o “eleki” e o “group sounds” constituem os antecedentes mais relevantes do psicadelismo nipónico. E justiça lhes seja feita. Se no plano musical não têm a oferecer nada de novo, estes fenómenos são um verdadeiro tesouro sociológico do Japão moderno, um registo inequívoco da forma como os seus habitantes lidam com a importação de cultura, fazendo-a parecer ainda mais original do que o próprio original, e criando algo completamente novo, único e refrescante através da cópia descarada.

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Mas retomemos a nossa pequena história. Durante os anos da ressurgência do Japão como potência económica e financeira, com uma população endinheirada que se podia dar ao luxo de comprar desde os carros e câmaras fotográficas de origem nacional, até às guitarras eléctricas de origem ocidental, o rock’n’roll atravessava um período crítico, com o afastamento de cena de Elvis devido ao serviço militar obrigatório, o encarceramento de Chuck Berry, e a queda em desgraça de Jerry Lee Lewis. Neste contexto de descrença nas figuras maiores do rock, o mundo em geral, e o Japão em particular, viraram-se para os grupos instrumentais, que faziam uso e abuso das novíssimas guitarras eléctricas saídas dos estábulos da Fender, da Gibson, e da Mosrite.

Os primeiros a atingirem o estatuto estelar no oriente foram precisamente os The Shadows, que acabariam por ver “Apache”, um original de Hank Marvin & Co., ser revisitado por Jimmie Tokita & His Mountain Playboys e dar origem a uma das maiores obsessões musicais japonesas: o “eleki”. O fenómeno “eleki”, que literalmente significa “eléctrico”, atingiu o Japão em finais dos anos 1950, alterando por completo a sua toponímia musical, até então dominada pela música tradicional e por baladas em formato de inócuo xarope para a tosse.

Algo de novo se perfilhava no horizonte. Algo de inquietante mas ao mesmo tempo moderno e revolucionário. A nomenclatura adoptada traduzia os elementos dessa nova música: a reificação do género instrumental, relegando para segundo plano as letras melosas de outrora, e a glorificação da guitarra eléctrica como ferramenta indispensável ao labor do músico moderno. Numa única palavra “eleki”.

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Os The Shadows atingiram os píncaros das tabelas de vendas um pouco por todo o mundo, com temas como “FBI”, “Frightened City” ou “Kon-Tiki”, popularizando o instrumental de guitarra como panaceia universal para o rock moribundo. A sua recepção no Japão não foi menos entusiástica do que noutras partes do globo, mas apesar do seu sucesso foi um quarteto originário de Tacoma que cativou o imaginário japonês de tal forma que, ainda hoje em dia, gozam de um culto notável naquele país: os The Ventures. Os motivos por detrás desta adulação não serão assim tão estranhos ou bizarros a um olhar mais cuidado. Quatro figuras inexpressivas e imóveis num palco cuidadosamente minimalista, com uma execução maquinal ultra-eficiente, os The Ventures antecipavam em vários aspectos os germânicos Kraftwerk, e inflamavam os corações dos perfeccionistas japoneses, os quais foram dos poucos povos onde as obsessivas políticas da qualidade de Juran ou Deming obtiveram sucesso.

A adoração que foi votada aos The Ventures começou durante uma visita ao Japão em 1962, como grupo de suporte, e atingiu o seu auge durante uma digressão como cabeças de cartaz em 1965, a qual ficou registada para a posteridade no álbum “Live in Japan 1965”.

Continuar a ler a segunda parte do artigo [Eleki – parte II].

Escrito por: Henrique Vicente

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