Ian Martin, crítico musical no Japan Times, observava recentemente que 2014 foi o ano em o fenómeno ‘Idol’ deixou de ser um estilo musical em si mesmo para se tornar num veículo para diferentes estilos musicais e artistas. O mesmo conceito que identifica projectos como as AKB48 e as Morning Musume passou a designar o metal pesado das Babymetal, o rap/hip hop das Lyrical School, o funk enérgico das Tokyo Girls Style, a pop hiperativa das Momoiro Clover Z e das Dempagumi.inc, o regresso do Shibuya-kei pela mão das Negicco, as anti-idol BiS ou mesmo o cocktail caleidoscópico de folk, pop, rock e electrónica da extraordinária Seiko Oomori, mesmo que firmemente enraizada na cena underground de Koenji, em Tóquio.
Mas mesmo entre esta estonteante diversidade, as cinco raparigas de Osaka conhecidas por Especia, formam um dos mais controversos e musicalmente desafiantes projectos ‘Idol’. E não porque a sua música seja alguma forma de avant-garde ou mistura inclassificável de estilos mas porque revitalizam alguns dos estilos musicais mais perniciosos e incompreendidos do passado: o disco sound, o synthpop de fins dos anos 1980 e o acid-jazz do início dos anos 1990. Para além de receberem a rótulo de ‘vaporwave idols’.
Despachemos, de imediato, o rótulo ‘vaporwave’, uma moda musical mais conhecida na internet do que fora dela que combina ‘muzak’ (‘música de elevador’ ou o equivalente musical do papel de parede) com electrónica moderna. Apesar das Especia namorarem o conceito, nos discos a sua presença está reduzida a introduções e epílogos e ao ocasional separador (a meio do disco, mais uma piscadela de olho retro, desta vez à mudança do lado dos discos em vinil).
Na verdade, a essência musical das Especia reside no seu trio de produtores e, em particular, na paixão de Yuki Yokoyama (aka Schtein & Longer, procurem nas fichas técnicas dos discos das BiS) pelos arranjos da pop de discoteca dos anos 1980 e pela sua combinação, não só com a electrónica mais moderna mas também com músicos e instrumentos reais. É um dos muitos aspetos em que as Especia se demarcam da ortodoxia ‘Idol’: apesar de também exibirem as suas rotinas de dança com música pré-gravada, ao vivo as canções são interpretadas em atuações eletrizantes acompanhadas por uma banda de oito elementos.
Formadas em 2012, com elementos dispersos por vários projetos da Tsubasa, o EP “Dulce” era uma viagem vertiginosa ao passado com os seus ritmos de dança, sintetizadores e sequenciadores cintilantes, guitarras funk e groove irresistível. Um convincente cartão de apresentação pilhado dos anos 1980, ‘Night Rider’, ‘FunkyRock’, ‘Glitter Seaside’ (com uma abertura reminiscente de New Order) e ‘Twinkle Emotion’ deixavam água na boca.
Mas foi no ano seguinte, com os seis temas do EP ‘Amarga’ (lançado em duas versões simultâneas, “Tarde” e “Noche”, com dois originais distintos em cada versão) que a fórmula foi apurada num disco absolutamente irresistível. Da abertura sedutora com ‘Twilight Palm Beach’, passando por ‘Sensual Game’, ‘Stereo Highway’, ‘Moody Rendezvous’, ‘Skytime’ e ‘Orange Fast Lane’, da melancólica melodia de ‘Midas Touch’ aos ritmos sincopados do excelente ‘Parliament’, todo o disco resplandecia e palpitava com electrónica, saxofones, melodias magníficas e linhas de baixo angulares a recordar os Chic. E as vozes transmitiam um misto de fragilidade e excitação juvenil em harmonias imprevisíveis. Como um licor irresistível: perfumado e intoxicante.
Sendo as Especia um projeto revivalista, o que as move é a nostalgia por outros tempos? Numa recente entrevista ao ‘Japan Times’, Haruka, com a sua sweatshirt da Nike, Monary, equipada com o n.º 23 de Michael Jordan, e Erika, pin-up perfeita da década de 1980, sorriem: eram recém-nascidas ou nem isso quando estes estilos estavam na moda. Não têm quaisquer recordações desses tempos, apenas fantasias remotas. Mas, da cuidada imagem individual de cada membro, aos vídeos, cartazes promocionais e capas dos discos, todo o conceito gráfico evoca um imaginário anacrónico. Por isso ficaram encantadas quando o público mais jovem as acolheu de braços abertos e, com “Gusto”, conquistaram o desejado reconhecimento comercial e crítico.
Editado no ano passado, “Gusto”, o primeiro álbum, foi, sem surpresas, levado em ombros pela crítica e constituiu o tão desejado ponto de viragem comercial. Ao longo dos seus 70 minutos, a sua consistência e elegância musicais surpreenderam mesmo aqueles que admitem pouco interesse pela música das Especia. É também um trabalho mais polido e diversificado, passando da languidez de ‘Bay Blues’ e ‘Deceitful Angel’, aos ritmos quase latinos do single ‘S・T・O・P! (YA・ME・TE!)’, ao electropop de ‘Midnight Confusion’ (escrito por Sawa Kouchi – procurem ‘RingRinga’ para escutar o melhor electropop do ano passado), à delicadeza de ‘L’elisir d’amore’ e ‘I wonder if you’re coming’. E, claro, o extraordinário ‘No. 1 Sweeper’. Há até espaço para uma remistura de discoteca no instrumental ‘Seashore Satie’, sem que a fruição do conjunto saia beliscada.
Dir-se-ia que as Especia estão a caminho do estrelato ‘Idol’ mas o calibre desta música pressagia algo mais ambicioso. Acabadas de escapar ao rótulo de ‘grupo de culto’ e ao nicho de mercado da nostalgia, o lançamento na passada semana de “Primera”, estreia por uma multinacional (neste caso, a Viktor Entertainment), volta a baralhar as coordenadas e toma balanço para novas experimentações. O disco-progressivo de “We are Especia (Dancing While Crying)”, ao longo dos seus 10 minutos justapõe uma introdução de ‘spoken word’ e uma de atmosférica balada ao piano que, por sua vez, floresce num pulsante manifesto de disco-sound. Por “Sweet tactics” perpassa um jazz subterrâneo e “Security Lucy” é uma rajada de synth-pop. E a produção minimalista e espaçosa de ‘Secret Jive’ transforma-a na canção pop mais perfeita desde que Paddy MacAllon gravou “When love breaks down”.
Se, como diz Yoko Ono, ”the work of an artist is to change the value of things”, então as Especia são um dos grupos artisticamente mais estimulantes e promissores da pop japonesa actual.
Escrito por: Cláudio Pedrosa