No ínicio dos anos 80, o jovem Masami Akita, insatisfeito com a sua passagem pelo rock e pela pintura, decide-se exprimir-se de um modo novo: brutal e inconformista, junta a agressividade do rock, a espontaneidade do freejazz, a radicalidade do dadaísmo e o extremismo do que se chamou “música industrial”, para criar Merzbow.
O nome deste cadáver esquesito adaptou-o de uma colagem tridimensional do dadaísta alemão Kurt Schwitters, Merzbau, constituída por peças inuitilizadas de velharias encontradas na rua. No conceito desta “Catederal da Miséria Erótica”, nome alternativo da obra, Masami Akita encontrou a ideia para as primeiras realizações do seu projecto musical.
Também elas eram colagens anárquicas de ruídos recolhidos de diversas fontes (televisão, rádio, discos, guitarras desafinadas, vozes) manipulados e amplificados de modo a produzir uma cacofonia densa e violenta. sem a mínima concessão às convenções sobre ritmo e melodia.
Estas peças haviam de se tornar cada vez mais extensas, superando os seus próprios limites em cada obra seguinte , originando aquilo que contraditoriamente se pode chamar: música noise.
A presença do ruído na música contemporãnea não era, já então inédita e, pelo menos, desde os futuristas itaianos que encontramos o ruído, não só como fenómeno acidental, mas tomado mesmo por vezes como o objecto essencial da expressão musical moderna.
Em 1913, Luigi Russolo escrevia o seu manifesto “A Arte dos Ruídos” e proclamava o uso de todos os ruídos, desde os motores de explosão aos gritos humanos, como expressão material de uma música moderna e futurista, que se opunha aos entediantes concertos dos salões burgueses.
Na verdade, este compositor italiano não se limitou a usaar os sons urbanos do quotidiano como os recriou, inventando os seus próprios intonarumori (máquinas de fazer ruído), para os quais escreveu composições numa nova forma de notação musical. Não obstante, não podemos inscrever o “bruitismo” de Russolo na genealogia de Merzbow. Se Russolo reivindicava o uso dos ruídos na sua música futurista, fazia-o em nome da renovação tímbrica da música moderna. De facto, podemos reconhecer herdeiros directos desse enrequecimento da música com sons concrets do quotidiano e da síntese electrónioca de sons em Edgar Varèse (“Poéme Eléctronique”), em Pierre Schaffer e Pierre Henry, ou mesmo em expressões populares, do rock ao techno. Já em Merzbow, e no noise japonês, em geral, o ruído não é apenas um novo instrumento; ele torna-se a forma e a matéria da obra musical, em tudo o que isso pode ter de contraditório.
O ruído é normalmente definido como o som desagradável e não desejado, opondo-se ao som musical. Esta é talvez a definição mais simples e mais aceite, mas assenta num critério subjectivo:o que é ruído para uns pode tratar-se música para outros. Nesta mesma linha relativista e subjectivista, Masami Akita problematiza: “Não faço ideia do que chamam música ou ruído (…) se o ruído significa som desconfortável, então a música pop é ruído para mim”.
Porém, e ao contrário do que mostra a boa fé destas palavras, a música noise joga precisamente com a oposição som musical/ruído, nomeadamente, com o facto de o ruído ser função do que não é ruído, que por sua vez é função de não ser ruído. Isto é, o ruído é ruído na medida em que não é música, e a música só o é, porque não é ruído.
Mas isto não significa que o ruído seja uma forma mais primitiva e originária de som. O som bruto não é nem música, nem ruído. Essas são apenas categorias que são aplicadas aos resultados da percepção auditiva em função de critérios psicológicos e culturais. Escolher o ruído como categoria estética essencial de uma expressão musical é partir de uma contradição interna: apresentando como música o que é suposto não ser música, parece matar no berço o próprio projecto de música noise, pois, a partir do momento em que é apresentado a um público disponível ela parece perder instantaneamente a sua função de ruído, tornando-se apenas projecto artístico.
Semelhante situação viveu o projecto de “anti-arte” Dada, onde os limites entre a expressão artística e a vida foram postos à prova, quando objectos do quotidiano (o famoso urinol de Duchamp) foram retirados do seu contexto e expostos como obras de arte. O projecto “anti” fracassara a partir do momento em que as peças passaram a integrar as colecções permanentes dos museus e o que era subversivo tornara-se num inofensivo momento da história da arte.
Ora o fracasso foi meramente aprarente e só pode assim ser interpretado à luz de considerações meramente formais. Com efeito, a subversão Dada foi bem real e concreta, servindo para requestionar os limites da linguagem artística e do papel da arte na sociedade.
Também o noise de Merzbow é concreto e a tensão dialéctica entre a música e ruído não pode ser resolvida pela opção formal de apresentar ou não como obra musical. Pelo contrário, a sedução do som de Merzbow, em toda a sua densidade, saturação, irrepetibilidade, irracionalidade, brutalidade, reside na iminente reversibilidade da sua tensão dialéctica: ruído insuportável/êxtase auditivo.
Por esta razão, a experiência de Merzbow aproxima-se do patético erótico: o desejo de fusão mística e a impossibilidade da união determinada pela descontinuidade trágica da diferença. É o próprio Masami Akita quem reivindica o pan-erotismo da sua expressão musical: “Tudo é erótico, todo o lugar é erótico”, citando o aforismo surrealista que mais o influenciou; e continua: “o ruído é a mais erótica forma de som, por isso todos os meus trabalhos referem ao erótico”. E, de facto, o ouvinte de Merzbow é brutalmente violado e, simultaneamente, convocado à escuta activa e desejante: assaltado pela densa massa de freqências, a repulsão logo se transforma em atracção e sente-se emergir nessa densidade sonora, sem, porém, nunca encontrar o conforto de uma harmonia ou a regularidade de um ritmo, antes, mantendo-se nume frenética e inalcançável demanda.
A metáfora do masoquista não é aqui deslocada, podendo mesmo considerar-se o paradigma do ouvinte ocidental de noise japonês. Mas a perspectiva oriental de Merzbow não é a do controlo da audiência ou mesmo do material sonoro (essa seria porventura a intenção de alguns grupos ocidentais oriundos da música industrial, como Whitehouse, referida porém como influência de Merzbow); bem no oposto disso, desde os seus primeiros trabalhos, Masami Akita procurou minorar a sua intervenção, reiventando o processo de criação automática através da aleatoriedade da produção do som pelo equipamento que utilizava, nomeadamente, explorando as virtualidades do “feedback”, em vez da notação musical.
“Os sons de “feedback” do equipamento são um conceito central para Merzbow. O “feedback” produz automaticamente uma tempestadede ruído e isso é bastante erótico”, como se se tratasse de uma “expiação magnética da electrónica”.
A produção de Merzbow é ainda muito activa e tem vindo a ganhar um grande reconhecimento internacional. O número de peças elava-se acima dos 500. Recomendam-se os álbuns disponíveis nalgumas discotecas – “Noisembryo”, “Music for Bondage Performance”, ” 1930″, Material Aktion II” – para a descoberta de uma das formas mais extremas e menos convencionais de expressão sonora.
Escrito por: Nuno da Fonseca